Estava a dormitar no cadeirão do quarto, embalada pelos ténues raios de luz que passavam através da cortina branca, rendada, da janela. Achava-se na penumbra, como sempre estivera na vida. Era uma pessoa discreta. Não levantava a voz, mesmo que estivesse zangada, nem sabia – as cordas vocais não tinham sido treinadas para isso. Sempre fora educada para obedecer, cumprir, aconchegar, deixar à noite, para os meninos que se deitavam tarde, o leitinho quente sobre o fogão e a chávenas viradas para baixo sobre os pires, em cima de um tabuleiro, sempre composto com um naperon de crochet engomadíssimo, feito ao serão das noites sem televisão, noutros tempos. Nesses tempos em que os natais eram passados com toda a família, com os miúdos pequenos, a fazerem teatros e a escorregarem pelas escadas de madeira enceradas brilhantemente pela Sílvia nas tardes que antecediam a vinda da família para a consoada. À noite comia-se bacalhau cozido com batatas, cebolas e grelos, precedidos de caldo verde temperado com rodelas de chouriço. Cada lugar à mesa tinha uma tangerina sobre o guardanapo. Dos armários saíam as loiças antigas de porcelana, os copos de cristal de pé verde e os talheres de prata. Havia tacinhas com pinhões, figos secos, passas e nozes, espalhadas pela mesa e, antes de se sentarem, os velhós, rabanadas e cuscurões ocupavam o lugar central, perdendo o seu protagonismo por umas horas, para dar lugar aos quentes e salgados, preparados com todo o esmero. Os miúdos sentavam-se numa mesa anexa à mesa principal e podiam dar largas ao seu entusiasmo, falando dos possíveis presentes e das brincadeiras dos últimos dias, já que só estavam todos juntos nesta altura.
Estas lembranças fizeram-na despertar. Levantou a cabeça em direcção à escrivaninha e procurou com o olhar a chave da gaveta pequena. Estava, como sempre, dentro da caixa de porcelana chinesa que o tio Mário trouxera de Paris. Levantou-se, abriu a caixinha e pegou na chave, levando-a à gaveta que logo se abriu. Lá dentro, uma caixa de madeira de xarão preta, com delicados desenhos pintados na tampa, repousava sem anseios como que esperando pelo Natal de cada ano. Maria abriu a caixa e retirou tudo o que ela continha: a fotografia do papá, sentado numa cadeira à porta do café Santa Cruz, ladeado por três dos dez filhos vivos. De barbas brancas e chapéu de feltro preto na cabeça, sorria com serena bonomia; a carta que o irmão mais novo mandara, a desejar Bom Natal, do outro lado do mar, onde cumpria uma comissão de serviço; os postaizinhos de Boas Festas ao avô e à avó, quando nem todos se encontravam perto; desenhos com meninos Jesus, vaquinhas e burrinhos; anjinhos e estrelas feitos com as pratinhas dos chocolates, com lacinhos de seda desbotados, para serem penduradas na árvore de Natal; duas velinhas e respectivos encaixes de latão, já enferrujado, com molinhas pequenas para serem presas aos ramos do pinheiro; bilhetes de pedidos ao Menino Jesus escritos pelo Papá enquanto os mais novos não sabiam escrever. Tudo isto lhe trouxera recordações dos Natais passados, em que a agilidade lhe permitia chegar a todo o lado, organizar tudo, fazer compras, embrulhar presentes, destinar as refeições dos vários dias em que estaria a família reunida até ao Ano Novo.
Todos os anos, na antevéspera de Natal, abria a caixinha de madeira e recordava os Natais passados, como pequenos segredos guardados para a altura em que a vida seria feita de memórias.