Chovia a cântaros na rua da Paz. Era de noite e pequenos lagos reflectiam as luzes e os telhados, ondulados pelos pingos de chuva. Não se via quase ninguém na rua. Apenas um homem com um saco de batatas às costas, chapéu enterrado na cabeça e uma gabardina que quase lhe chegava aos pés, atravessava, enviesado, a rua, dum lado ao outro.
O saco tinha um conteúdo duvidoso, uma vez que, não só saltava à medida que o homem andava, por causa dos solavancos, como o tecido parecia fervilhar como se as batatas tivessem vida.
Ao fundo da rua, um gato miava como se o mundo fosse acabar. O homem assustou-se e quase ia escorregando numa folha de jarro meia desfeita, atirada sabe-se lá de onde, talvez de uma janela. Com o desequilíbrio, a boca do saco entreabriu-se, levemente, e foi o bastante para saltar de lá qualquer coisa. A coisa tinha olhos, e uma boca enorme. A barriga sobressaía no meio das patas, que eram muito compridas as de trás e menos as da frente. Uma vez chegado ao chão, soltou um suspiro de alívio, inspirou o ar frio e húmido da noite e, por fim, deixou soar no meio do som ritmado da chuva sobre a calçada, um grito de liberdade que era inconfundível, após tanto tempo de clausura, a sua voz coaxante de sapo. Aquele primeiro e único grito, pareceu o princípios dos tempos, o som primordial da formação do universo e ecoou como um grande soluço, como se estivesse guardado na garganta, após tantos anos de opressão.
O chão molhado era propício à fuga e as poças de água iam aliviando as torturas de um piso desconfortável. Tanto tempo fechado, sem ver solução para tamanho problema, pensou o sapo. Ainda bem que os obstáculos não existiam só para si, mas também para o seu opressor. Quando menos esperam, algo no caminho dos que mandam, dos que amachucam, dos que se apropriam da vida alheia, tentando moldá-la aos seus desejos, surge imprevisivelmente, como aquela folha de jarro, que não era suposto ali estar, pois nenhum jardim das redondezas possuía aquela espécie de planta. É o destino, dizem os fatalistas. É a mão de Deus, dizem os crentes. É o acaso, dizem os cépticos. Não interessa, pois, quem deitou a folha ao chão, nem com que antecedência o fizera de modo a que estivesse em putrefacção no momento em que o homem colocou o pé sobre ela, o que interessa é que um sapo prisioneiro esperou a sua oportunidade e soube aproveitar, corajosamente, o destino, a providência divina ou o acaso.