segunda-feira, 8 de março de 2010

Um grito pode iluminar a noite mais escura

Chovia a cântaros na rua da Paz. Era de noite e pequenos lagos reflectiam as luzes e os telhados, ondulados pelos pingos de chuva. Não se via quase ninguém na rua. Apenas um homem com um saco de batatas às costas, chapéu enterrado na cabeça e uma gabardina que quase lhe chegava aos pés, atravessava, enviesado, a rua, dum lado ao outro.

O saco tinha um conteúdo duvidoso, uma vez que, não só saltava à medida que o homem andava, por causa dos solavancos, como o tecido parecia fervilhar como se as batatas tivessem vida.

Ao fundo da rua, um gato miava como se o mundo fosse acabar. O homem assustou-se e quase ia escorregando numa folha de jarro meia desfeita, atirada sabe-se lá de onde, talvez de uma janela. Com o desequilíbrio, a boca do saco entreabriu-se, levemente, e foi o bastante para saltar de lá qualquer coisa. A coisa tinha olhos, e uma boca enorme. A barriga sobressaía no meio das patas, que eram muito compridas as de trás e menos as da frente. Uma vez chegado ao chão, soltou um suspiro de alívio, inspirou o ar frio e húmido da noite e, por fim, deixou soar no meio do som ritmado da chuva sobre a calçada, um grito de liberdade que era inconfundível, após tanto tempo de clausura, a sua voz coaxante de sapo. Aquele primeiro e único grito, pareceu o princípios dos tempos, o som primordial da formação do universo e ecoou como um grande soluço, como se estivesse guardado na garganta, após tantos anos de opressão.

O chão molhado era propício à fuga e as poças de água iam aliviando as torturas de um piso desconfortável. Tanto tempo fechado, sem ver solução para tamanho problema, pensou o sapo. Ainda bem que os obstáculos não existiam só para si, mas também para o seu opressor. Quando menos esperam, algo no caminho dos que mandam, dos que amachucam, dos que se apropriam da vida alheia, tentando moldá-la aos seus desejos, surge imprevisivelmente, como aquela folha de jarro, que não era suposto ali estar, pois nenhum jardim das redondezas possuía aquela espécie de planta. É o destino, dizem os fatalistas. É a mão de Deus, dizem os crentes. É o acaso, dizem os cépticos. Não interessa, pois, quem deitou a folha ao chão, nem com que antecedência o fizera de modo a que estivesse em putrefacção no momento em que o homem colocou o pé sobre ela, o que interessa é que um sapo prisioneiro esperou a sua oportunidade e soube aproveitar, corajosamente, o destino, a providência divina ou o acaso.

1 comentário:

Joalex Henry disse...

Ninguém gosta de ser privado da sua liberdade. Era bom que surgisse no caminho de todos os opressores do mundo, mesmo daqueles que se escondem por trás da cortina protectora de qualquer democracia, uma folha de jarro ou até mesmo uma casca de banana, que os fizesse escorregar e cair e que a partir daí um grito de liberdade desfizesse as trevas da opressão.