No quarto, a rapariga está de
joelhos a tentar perceber para que serve aquela argola no sobrado. Sem luz, pois já é de noite, a
rapariga procura algo, apalpando o banco e depois a cadeira acabando por
encontrar um coto de vela e uma caixa de fósforos.
Acende a vela e aproxima-a da
argola de ferro.
Olhando com mais atenção,
descobre um sulco no chão e começa a limpar as tábuas com os dedos.Percebe que o sulco pertence a um
alçapão e tenta abri-lo.
Pareceu-lhe ter ouvido algum
ruído no exterior do quarto o que a fez parar de limpar o chão, ao mesmo tempo
que olhava para a porta, amedrontada. Finalmente ouviu alguém a
afastar-se e percebeu que era a dona da casa. Apagou a vela, levantou-se com cuidado
e abriu a porta do quarto. Viu, então, a velha a afastar-se
e a desaparecer pelas escadas abaixo.Fechou a porta e voltou a
ajoelhar-se junto ao alçapão.Tentou levantar a argola de ferro
mas não conseguiu. Levantou-se e começou a procurar
qualquer coisa para a ajudar a levantar a argola. Olhou para todos os lados mas não
encontrou nada no quarto que a pudesse ajudar. Por fim, dirigiu-se à pequena
mala que trazia na mão e abriu-a procurando freneticamente, no meio da roupa,
revirando tudo. Acabou por despejar todo o
conteúdo da mala sobre a cama e descobriu uma tesoura. Olhou para a tesoura com
satisfação e dirigiu-se de novo ao alçapão. Enfiou os bicos da tesoura na
argola conseguindo levantar um pouco o alçapão. O pó provocava-lhe tosse pelo que
virou a cabeça para o lado. O buraco do alçapão está escuro e
de lá vem um cheiro estranho que a fez tapar o nariz com a outra mão. Voltou a baixar a porta do
alçapão e foi buscar o coto de vela, ainda acesa. Aproximou-se de novo e chegou o
coto de vela ao buraco negro que se iluminou momentaneamente deixando ver uma
rede de teias de aranha, espessa e quase cerrada. Com uma mão segurava a porta do
alçapão, com a outra o coto de vela. Para tentar rasgar as teias de
aranha passou a vela para a mão que segurava a porta do alçapão. Nesse momento o coto de vela
apagou-se. Tinha chegado ao fim!
sexta-feira, 13 de julho de 2012
II
Já na sala, a velha senta-se no
sofá, embrulhada no xaile preto e roto. Como se tivesse sentido algo de
estranho no andar de cima, olhou para o teto, fazendo um esgar com a boca
desdentada. Algo ou alguém arranha o chão do
andar de cima, como se quisesse cavar um buraco. A velha levanta-se, furiosa, e
começa a subir as escadas.
No primeiro andar, ao cimo das
escadas há um corredor e ao fundo do corredor há uma porta, para onde a velha
se dirige, a coxear e a arrastar uma perna. Quando chega à porta, encosta o
ouvido e faz uma careta. Afasta-se da porta e, quando está a meio do corredor
ouve um ruído que a faz virar a cabeça, primeiro e depois o corpo todo. Volta a
aproximar-se da porta e abre-a, furiosamente, entrando de rompante. Fecha a
porta atrás de si e ouvem-se os passos dela a coxear e a arrastar a perna, num
som cada vez mais sumido. Ouve-se algo a bater e quase
imediatamente uns guinchos horrorosos. Depois faz-se silêncio e a velha regressa passados
alguns minutos.
Abre a porta e sai. Fecha a porta
e avança pelo corredor. Olha para baixo, como que
tentando perceber se a rapariga ouviu os barulhos. Continua e desce as escadas até
ao rés-do-chão, dirigindo-se ao quarto da rapariga. Encosta o ouvido à porta do
quarto, durante algum tempo, parecendo não ouvir nenhum ruido e afasta-se não
muito satisfeita.
Uma rapariga chega à Rua da Paz de mala na mão e senta-se numa cadeira do Café Central. Ao ser atendida, pede um copo de
água. O empregado faz uma cara de poucos amigos mas regressa com um copo de
água, poisando-o na mesa com brusquidão. A rapariga pega no jornal local,
que está em cima da mesa e procura um trabalho na secção de anúncios. Então, faz um círculo num dos anúncios,
com a esferográfica e, pegando nessa página, rasga-a e leva-a, levantando-se. Chega a uma loja de ferragens e
fala com o patrão. Sai da loja satisfeita e
dirige-se para o café novamente. Lá, fala com a dona do café, que é
gorda e tem mau aspeto. Sai com alguma pressa e dirige-se
a uma casa velha e esguia, com dois andares e um sótão.
Bate à porta com a maçaneta,
primeiro levemente e depois com mais força. Uma velha debruça-se da janela do
segundo andar e pergunta o que quer. Ela responde que procura um
quarto. “Será que a senhora tem um quarto para alugar? Não posso pagar muito
pois acabei de chegar e só amanhã começo a trabalhar!”
A velha desaparece da janela,
fecha-a e demora alguns minutos a aparecer à porta.
Ao abrir a porta, mostra uma cara
antipática, é magra, tem uma verruga no queixo e o cabelo em desalinho preso no
alto da cabeça. Usa avental desbotado e umas pantufas muito velhas. Deixa entrar a rapariga e, por
trás dela, faz um sorriso misterioso. A rapariga entra para uma sala
com um velho sofá cheio de buracos, rasgado, coberto com mantas velhas, um
xaile e um gato preto que a dona sacode, abanando a mão ossuda e comprida. Ordena à rapariga que se sente e
ela obedece. Falam durante algum tempo e a
rapariga acaba por ser conduzida a um quarto. A velha abre a porta do quarto,
fazendo um sinal à rapariga para entrar. Com a cabeça indica-lhe a cama. A rapariga olha para a cama, que
tem apenas um colchão de palha, às riscas azuis e brancas, muito velho. Olhando rapidamente
à volta verifica que só tem um banco como mesinha de cabeceira e uma cadeira
onde poderá pendurar alguma roupa. Nem tapete, nem guarda fato.
A velha faz
novamente aquele sorriso misterioso e fechando a porta, afasta-se pelo corredor
esfregando as mãos de contente, enquanto faz novamente aquele sorriso…
A rapariga
limpa o pó da cadeira e senta-se, desolada, apoiando os cotovelos nos joelhos e
a cabeça entre as mãos… Começa a chorar.
Enxuga as
lágrimas e, olhando para o teto, verifica que não tem
lâmpada. Mais ao lado,
uma pequena janela deixa passar um fio de luz que incide numa das tábuas do
sobrado. Seguindo o fio
de luz com o olhar a rapariga verifica que há uma argola de ferro nessa tábua e
aproxima-se, curiosa, debruçando-se sobre o chão.
Chovia a cântaros na rua da Paz. Era de noite e pequenos lagos reflectiam as luzes e os telhados, ondulados pelos pingos de chuva. Não se via quase ninguém na rua. Apenas um homem com um saco de batatas às costas, chapéu enterrado na cabeça e uma gabardina que quase lhe chegava aos pés, atravessava, enviesado, a rua, dum lado ao outro.
O saco tinha um conteúdo duvidoso, uma vez que, não só saltava à medida que o homem andava, por causa dos solavancos, como o tecido parecia fervilhar como se as batatas tivessem vida.
Ao fundo da rua, um gato miava como se o mundo fosse acabar. O homem assustou-se e quase ia escorregando numa folha de jarro meia desfeita, atirada sabe-se lá de onde, talvez de uma janela. Com o desequilíbrio, a boca do saco entreabriu-se, levemente, e foi o bastante para saltar de lá qualquer coisa. A coisa tinha olhos, e uma boca enorme. A barriga sobressaía no meio das patas, que eram muito compridas as de trás e menos as da frente. Uma vez chegado ao chão, soltou um suspiro de alívio, inspirou o ar frio e húmido da noite e, por fim, deixou soar no meio do som ritmado da chuva sobre a calçada, um grito de liberdade que era inconfundível, após tanto tempo de clausura, a sua voz coaxante de sapo. Aquele primeiro e único grito, pareceu o princípios dos tempos, o som primordial da formação do universo e ecoou como um grande soluço, como se estivesse guardado na garganta, após tantos anos de opressão.
O chão molhado era propício à fuga e as poças de água iam aliviando as torturas de um piso desconfortável. Tanto tempo fechado, sem ver solução para tamanho problema, pensou o sapo. Ainda bem que os obstáculos não existiam só para si, mas também para o seu opressor. Quando menos esperam, algo no caminho dos que mandam, dos que amachucam, dos que se apropriam da vida alheia, tentando moldá-la aos seus desejos, surge imprevisivelmente, como aquela folha de jarro, que não era suposto ali estar, pois nenhum jardim das redondezas possuía aquela espécie de planta. É o destino, dizem os fatalistas. É a mão de Deus, dizem os crentes. É o acaso, dizem os cépticos. Não interessa, pois, quem deitou a folha ao chão, nem com que antecedência o fizera de modo a que estivesse em putrefacção no momento em que o homem colocou o pé sobre ela, o que interessa é que um sapo prisioneiro esperou a sua oportunidade e soube aproveitar, corajosamente, o destino, a providência divina ou o acaso.
Estava a dormitar no cadeirão do quarto, embalada pelos ténues raios de luz que passavam através da cortina branca, rendada, da janela.Achava-se na penumbra, como sempre estivera na vida. Era uma pessoa discreta. Não levantava a voz, mesmo que estivesse zangada, nem sabia – as cordas vocais não tinham sido treinadas para isso. Sempre fora educada para obedecer, cumprir, aconchegar, deixar à noite, para os meninos que se deitavam tarde, o leitinho quente sobre o fogão e a chávenas viradas para baixo sobre os pires, em cima de um tabuleiro, sempre composto com um naperon de crochet engomadíssimo, feito ao serão das noites sem televisão, noutros tempos. Nesses tempos em que os natais eram passados com toda a família, com os miúdos pequenos, a fazerem teatros e a escorregarem pelas escadas de madeira enceradas brilhantemente pela Sílvia nas tardes que antecediam a vinda da família para a consoada. À noite comia-se bacalhau cozido com batatas, cebolas e grelos, precedidos de caldo verde temperado com rodelas de chouriço. Cada lugar à mesa tinha uma tangerina sobre o guardanapo. Dos armários saíam as loiças antigas de porcelana, os copos de cristal de pé verde e os talheres de prata. Havia tacinhas com pinhões, figos secos, passas e nozes, espalhadas pela mesa e, antes de se sentarem, os velhós, rabanadas e cuscurões ocupavam o lugar central, perdendo o seu protagonismo por umas horas, para dar lugar aos quentes e salgados, preparados com todo o esmero. Os miúdos sentavam-se numa mesa anexa à mesa principal e podiam dar largas ao seu entusiasmo, falando dos possíveis presentes e das brincadeiras dos últimos dias, já que só estavam todos juntos nesta altura.
Estas lembranças fizeram-na despertar. Levantou a cabeça em direcção à escrivaninha e procurou com o olhar a chave da gaveta pequena. Estava, como sempre, dentro da caixa de porcelana chinesa que o tio Mário trouxera de Paris. Levantou-se, abriu a caixinha e pegou na chave, levando-a à gaveta que logo se abriu. Lá dentro, uma caixa de madeira de xarão preta, com delicados desenhos pintados na tampa, repousava sem anseios como que esperando pelo Natal de cada ano. Maria abriu a caixa e retirou tudo o que ela continha: a fotografia do papá, sentado numa cadeira à porta do café Santa Cruz, ladeado por três dos dez filhos vivos. De barbas brancas e chapéu de feltro preto na cabeça, sorria com serena bonomia; a carta que o irmão mais novo mandara, a desejar Bom Natal, do outro lado do mar, onde cumpria uma comissão de serviço; os postaizinhos de Boas Festas ao avô e à avó, quando nem todos se encontravam perto; desenhos com meninos Jesus, vaquinhas e burrinhos; anjinhos e estrelas feitos com as pratinhas dos chocolates, com lacinhos de seda desbotados, para serem penduradas na árvore de Natal; duas velinhas e respectivos encaixes de latão, já enferrujado, com molinhas pequenas para serem presas aos ramos do pinheiro; bilhetes de pedidos ao Menino Jesus escritos pelo Papá enquanto os mais novos não sabiam escrever. Tudo isto lhe trouxera recordações dos Natais passados, em que a agilidade lhe permitia chegar a todo o lado, organizar tudo, fazer compras, embrulhar presentes, destinar as refeições dos vários dias em que estaria a família reunida até ao Ano Novo.
Todos os anos, na antevéspera de Natal, abria a caixinha de madeira e recordava os Natais passados, como pequenos segredos guardados para a altura em que a vida seria feita de memórias.
Na escola, o Pedro era conhecido por ter jeito para desenho. Muitas vezes a professora Alzira deixava a sala para ir mostrar às colegas das salas vizinhas os desenhos do Pedro. Esse dom para desenhar era para ele próprio um mistério,já que, quando pequeno, não se atrevia a pegar num lápis para desenhar o que quer que fosse. Isto aconteceu durante alguns anos até ao dia em que encontrou um lápis vermelho, seistavado e com letras douradas. O lápis parecia ter aparecido do nada pois, antes de o encontrar no chão do seu quarto, o Pedro não tinha dado pela sua presença. Mais misterioso ainda, era o facto do lápis ter desaparecido imediatamente a seguir a tê-lo encontrado. Foi um episódio que lhe fez perder alguns minutos de atenção mas logo esqueceu, uma vez que não era o tipo de objecto que lhe interessasse muito.
Um dia, porém, ao dar a volta à cama para pegar uns livros que haviam escorregado no intervalo que aquela fazia com a parede, encontrou-o novamente e isso recordou-lhe as circunstâncias do seu aparecimento repentino, da primeira vez. Resolveu pegar nele. Era, na verdade, um bonito lápis. Enquanto olhava para ele, o avô Carlos que passava diante da porta semi-cerrada do quarto do Pedro, ao ver que o neto admirava o lápis vermelho, aproximou-se e sussurrou:
“É bonito, não é?”
Pedro olhou para a porta, surpreendido, pois não contava com a presença do avô.
“É sim, avô!”
“Tiveste muita sorte em “ele” ter ido ter contigo!”
“Como assim, avô?”
“Esse lápis não vai ter com qualquer um. É mágico!”
“Mágico?”
“Sim! Já me veio parar às mãos uma vez, quando era mais ou menos da tua idade!”
E, enquanto falava, o avô ia entrando no quarto do Pedro, sentando-se ao lado do neto, na beira da cama.
“E ele apareceu assim, sem mais nem menos?” - admirou-se o Pedro.
“Sem mais nem menos!”
“Isso é muito estranho! A mim aconteceu-me o mesmo há dias atrás!”
“Pois, parece que é uma característica deste lápis! Quando o encontrei também me pareceu surgido do nada!”
“Mas, avô, o que aconteceu a seguir?”
“A seguir peguei nele e, sem saber como, senti-me impelido a procurar uma folha de papel para ver como era o seu traço!”
“E como era?”
“Era cinzento, brilhante, fino e grosso, leve e carregado!”
“Tudo isso, avô? Como é possível?”
“Foi o acontecimento mais marcante da minha infância! De repente o lápis parecia ter ganhado vida, traçando linhas rectas, curvas fazendo surgir formas extraordinárias de elefantes, árvores fantásticas, flores nunca vistas, edifícios altos, com muitas janelas e balcões, pássaros riscando o céu, nuvens encaracoladas, pessoas caminhando de um lado para o outro, uns a trabalhar, outros a passear, automóveis, aviões, barcos num mar calmo com o pôr-do-sol no horizonte…”
“Avô, achas que pode acontecer o mesmo comigo?”
“Sim, filho, não é difícil! Basta pegares nele, numa folha de papel e deixares-te levar pela sua vontade! É até provável que vejas antecipadamente, no papel as formas que ele fará realçar! Ele irá contar-te histórias que nunca imaginaste poderem existir!”
“Obrigada, avô! Hoje mesmo vou descobrir os segredos do lápis mágico!”
Naquela noite a Lua brilhava como uma grande bola de cetim branco e frio sobre as casas da rua da Paz. Nos telhados, a sombras quadriculavam-se e as aves nocturnas soltavam pios de arrepiar e pôr os cabelos em pé. No ar, sentia-se uma brisa quente fora de época, uma vez que era o fim do mês de Outubro. Atrás das árvores um barulho de arrastar de pés parecia varrer todas as folhas caídas naquele Outono, ao longo do rio. De repente, um som de algo pesado atirado à água, quebrava o quase silêncio da noite.
******
Ao fim da tarde, Ana regressava a casa, depois de um dia de árduo trabalho no cabeleireiro. As costas, os pés, todo o corpo lhe doía, até porque andava em formação pós laboral e o simples facto de não se poder mexer muito na cadeira da sala de aula não contribuía para melhorar a tensão muscular que acumulara ao longo do dia. Rui, o seu colega de trabalho, precisava de tratar de um assunto de família e saíra mais cedo do serviço. O trabalho pesado sobrara para ela. Acabou por ter de varrer o salão, limpar os espelhos, dobrar as toalhas, ordenar as latas de laca e os frascos de produtos para o cabelo, limpar as escovas, tudo isto sozinha. Gostava do trabalho mas nada parecia fácil. Umas vezes as clientes não ficavam satisfeitas com a secagem do cabelo, outras com a maneira como lavava as cabeças, etc., etc.
Naquele dia resolvera atalhar caminho pelo rio quando, ao passar numa curva do caminho, junto ao castanheiro velho, esbarrou com o seu colega Rui que, com o rosto branco que nem cal da parede, a cumprimentou como se não a tivesse visto ainda nesse dia.
“Olá! Boa noite! Estás boa?”
“Olá! Então por aqui? Não ias para casa da tua avó tratar de um assunto de família?”
“Sssim! Já está tratado!”
“Então o que fazes aqui?”
“Ora, vim apanhar ar!”
“Aqui, sozinho?”
“Então, tu também aqui estás!”
“Sim, mas eu vou para casa!”
“E eu também! Adeus! Até amanhã!”
“Até amanhã, Rui!” Ora esta – pensava a Ana – ele há com cada uma! G’anda lata! O que é que ele andaria aqui a fazer?
Sem pensar mais nisso, Ana continuou o seu caminho, não sem olhar para trás por várias vezes, não fosse o diabo tecê-las.
No dia seguinte foi a primeira a chegar, como era costume. Passada uma hora chegou o Rui com cara de quem não tinha pregado olho toda a noite.
“Isso é que foi farra!” disse a D. Catarina, proprietária do estabelecimento.
“Eh! Eh!”- sorriu Rui à laia de resposta.
Ana franziu o sobrolho. Ele não tinha estado em farra nenhuma, porque é que não dizia a verdade?
Rui olhou para ela, como se implorasse cumplicidade e Ana calou-se, para não deixar ficar mal o amigo.
Mais tarde, ao fim da manhã, chegava o jornal local do dia que, na primeira página, apresentava em letras garrafais “ Corpo de septuagenária resgatado do rio já sem vida, junto à curva do castanheiro!”.
Ana arrepiou-se. Lembrou-se então que o local onde acharam o corpo, era precisamente onde se havia cruzado abruptamente com o Rui, na noite anterior. Olhou para o colega mas ele fugiu com o olhar. Ana ficou aflita. O que havia de fazer? Falar com ele? E se ele ficasse furioso e também ela, frágil e leve, pudesse ser atirada ao rio com toda a facilidade? O gesto de secar o cabelo a uma cliente parara para dar lugar à visualização da cena da sua execução e afundamento. A cliente protestou:
“Ai, a minha orelha!”
“Desculpe, D. Alzira! Foi sem querer!”
“Há que ter cuidado!”
“Sim D. Alzira, peço desculpa mais uma vez! Estava distraída!”
“ É sempre assim…” E a cliente lá ia desenrolando o rol da sua pouca sorte. Daquela vez a orelha, no outro dia ficara com uma mancha de tinta na blusa branca. Já para não falar na cor do cabelo, que na semana passada tinha ficado verde, depois de uma descoloração.
Ana perdera-se nos seus pensamentos enquanto ia olhando para o Rui de soslaio. Este parecia cada vez mais incomodado à medida que Ana olhava para ele. Até que, à hora de almoço, como era costume, saíram juntos. Pelo caminho, Ana resolveu ir directa ao assunto:
“O que estavas a fazer ontem naquele sítio, aquela hora?”
“E tu? Também lá estavas e eu não perguntei nada!”
“Não desvies a conversa! Diz lá o que estavas a fazer! Não viste nada estranho? Foi no local onde encontraram a velhota!”
“ Não sei, não vi nada…até porque…”
“ Até porque…continua!”
“Até porque eu estava, ou melhor tinha acabado de estar com aquela pessoa que tu sabes! Acabámos tudo!”
“Ahn?”
“Sim, tínhamos acabado tudo quando tu apareceste!”
“Então o assunto de família era esse?”
“Sim!”
“E a tua avó?”
“Sei lá, deve estar na aldeia! Há uma semana que não a vejo!”
“Oh Rui, dá cá um xi e um beijinho! Se soubesses o susto que tu me pregaste!”
“Eu? Porquê?”
“Isso agora não interessa! Vamos mas é almoçar depressa, que ainda temos de ir comprar umas coisas para festejar o Halloween!”
No fim da tarde, Ana resolvera voltar a casa pelo caminho da véspera. Estava um pouco ventoso mas não tão quente. A certa altura, quando ia a passar na curva onde encontrara o Rui no dia anterior, ouviu um ruído estranho, como se alguém arrastasse os pés. Virou-se de repente e soltou um grito de pavor…alguém muito pequeno mas pesado olhava para ela com ar de quem queria agarrá-la. Ana, impulsionada por uma força que desconhecia, virou-se de repente e desatou a correr o mais depressa que conseguiu. Quando chegou a casa, sentia o coração na garganta. A mãe perguntou-lhe o que tinha mas ela nem conseguia falar.
“Sabes o que aconteceu ontem, ao fim da tarde, lá para os lados do rio, na curva do castanheiro?”
“Sim, mãe, encontraram uma velhota!”
“Tu também tens a mania de vir por aquele caminho!”