sábado, 31 de outubro de 2009

Halloween

Naquela noite a Lua brilhava como uma grande bola de cetim branco e frio sobre as casas da rua da Paz. Nos telhados, a sombras quadriculavam-se e as aves nocturnas soltavam pios de arrepiar e pôr os cabelos em pé. No ar, sentia-se uma brisa quente fora de época, uma vez que era o fim do mês de Outubro. Atrás das árvores um barulho de arrastar de pés parecia varrer todas as folhas caídas naquele Outono, ao longo do rio. De repente, um som de algo pesado atirado à água, quebrava o quase silêncio da noite.

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Ao fim da tarde, Ana regressava a casa, depois de um dia de árduo trabalho no cabeleireiro. As costas, os pés, todo o corpo lhe doía, até porque andava em formação pós laboral e o simples facto de não se poder mexer muito na cadeira da sala de aula não contribuía para melhorar a tensão muscular que acumulara ao longo do dia. Rui, o seu colega de trabalho, precisava de tratar de um assunto de família e saíra mais cedo do serviço. O trabalho pesado sobrara para ela. Acabou por ter de varrer o salão, limpar os espelhos, dobrar as toalhas, ordenar as latas de laca e os frascos de produtos para o cabelo, limpar as escovas, tudo isto sozinha. Gostava do trabalho mas nada parecia fácil. Umas vezes as clientes não ficavam satisfeitas com a secagem do cabelo, outras com a maneira como lavava as cabeças, etc., etc.

Naquele dia resolvera atalhar caminho pelo rio quando, ao passar numa curva do caminho, junto ao castanheiro velho, esbarrou com o seu colega Rui que, com o rosto branco que nem cal da parede, a cumprimentou como se não a tivesse visto ainda nesse dia.

“Olá! Boa noite! Estás boa?”

“Olá! Então por aqui? Não ias para casa da tua avó tratar de um assunto de família?”

“Sssim! Já está tratado!”

“Então o que fazes aqui?”

“Ora, vim apanhar ar!”

“Aqui, sozinho?”

“Então, tu também aqui estás!”

“Sim, mas eu vou para casa!”

“E eu também! Adeus! Até amanhã!”

“Até amanhã, Rui!” Ora esta – pensava a Ana – ele há com cada uma! G’anda lata! O que é que ele andaria aqui a fazer?

Sem pensar mais nisso, Ana continuou o seu caminho, não sem olhar para trás por várias vezes, não fosse o diabo tecê-las.

No dia seguinte foi a primeira a chegar, como era costume. Passada uma hora chegou o Rui com cara de quem não tinha pregado olho toda a noite.

“Isso é que foi farra!” disse a D. Catarina, proprietária do estabelecimento.

“Eh! Eh!”- sorriu Rui à laia de resposta.

Ana franziu o sobrolho. Ele não tinha estado em farra nenhuma, porque é que não dizia a verdade?

Rui olhou para ela, como se implorasse cumplicidade e Ana calou-se, para não deixar ficar mal o amigo.

Mais tarde, ao fim da manhã, chegava o jornal local do dia que, na primeira página, apresentava em letras garrafais “ Corpo de septuagenária resgatado do rio já sem vida, junto à curva do castanheiro!”.

Ana arrepiou-se. Lembrou-se então que o local onde acharam o corpo, era precisamente onde se havia cruzado abruptamente com o Rui, na noite anterior. Olhou para o colega mas ele fugiu com o olhar. Ana ficou aflita. O que havia de fazer? Falar com ele? E se ele ficasse furioso e também ela, frágil e leve, pudesse ser atirada ao rio com toda a facilidade? O gesto de secar o cabelo a uma cliente parara para dar lugar à visualização da cena da sua execução e afundamento. A cliente protestou:

“Ai, a minha orelha!”

“Desculpe, D. Alzira! Foi sem querer!”

“Há que ter cuidado!”

“Sim D. Alzira, peço desculpa mais uma vez! Estava distraída!”

“ É sempre assim…” E a cliente lá ia desenrolando o rol da sua pouca sorte. Daquela vez a orelha, no outro dia ficara com uma mancha de tinta na blusa branca. Já para não falar na cor do cabelo, que na semana passada tinha ficado verde, depois de uma descoloração.

Ana perdera-se nos seus pensamentos enquanto ia olhando para o Rui de soslaio. Este parecia cada vez mais incomodado à medida que Ana olhava para ele. Até que, à hora de almoço, como era costume, saíram juntos. Pelo caminho, Ana resolveu ir directa ao assunto:

“O que estavas a fazer ontem naquele sítio, aquela hora?”

“E tu? Também lá estavas e eu não perguntei nada!”

“Não desvies a conversa! Diz lá o que estavas a fazer! Não viste nada estranho? Foi no local onde encontraram a velhota!”

“ Não sei, não vi nada…até porque…”

“ Até porque…continua!”

“Até porque eu estava, ou melhor tinha acabado de estar com aquela pessoa que tu sabes! Acabámos tudo!”

“Ahn?”

“Sim, tínhamos acabado tudo quando tu apareceste!”

“Então o assunto de família era esse?”

“Sim!”

“E a tua avó?”

“Sei lá, deve estar na aldeia! Há uma semana que não a vejo!”

“Oh Rui, dá cá um xi e um beijinho! Se soubesses o susto que tu me pregaste!”

“Eu? Porquê?”

“Isso agora não interessa! Vamos mas é almoçar depressa, que ainda temos de ir comprar umas coisas para festejar o Halloween!”

No fim da tarde, Ana resolvera voltar a casa pelo caminho da véspera. Estava um pouco ventoso mas não tão quente. A certa altura, quando ia a passar na curva onde encontrara o Rui no dia anterior, ouviu um ruído estranho, como se alguém arrastasse os pés. Virou-se de repente e soltou um grito de pavor…alguém muito pequeno mas pesado olhava para ela com ar de quem queria agarrá-la. Ana, impulsionada por uma força que desconhecia, virou-se de repente e desatou a correr o mais depressa que conseguiu. Quando chegou a casa, sentia o coração na garganta. A mãe perguntou-lhe o que tinha mas ela nem conseguia falar.

“Sabes o que aconteceu ontem, ao fim da tarde, lá para os lados do rio, na curva do castanheiro?”

“Sim, mãe, encontraram uma velhota!”

“Tu também tens a mania de vir por aquele caminho!”

“Deixe lá mãe, nunca mais venho por lá!”

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O barco rasgado

No caminho para casa o Sr. Justino encontrara uma folha de papel rasgada e manchada com pingos que pareciam de água. Por curiosidade, apanhou-a do chão e mirou-a de um lado e doutro na esperança de encontrar alguma palavra escrita. Não havia nada escrito. Apenas num dos lados, um desenho que parecia ter sido feito por uma criança, representava uma parte de um barco rodeado de ondas, talvez um barco de pesca. Sobrevoando o barco, algumas das que deviam pertencer a um conjunto de gaivotas, dava a sensação de que o barco estaria já cheio de peixe. Ao longe, na linha do horizonte, meio sol alaranjado espalhava os seus raios amarelos iluminando a paisagem marinha. A folha tinha sido rasgada, mas deixava adivinhar um bonito desenho, rico em pormenores e cheio de esperança. Esperança transmitida pelo raiar do sol, pela promessa de boa pescaria, pela alegria da chegada ao lar com os cabazes cheios. Quem teria rasgado a folha e porquê? Onde estaria a outra metade? Quem seria o autor do desenho?

Era fim da tarde, meteu a chave à porta e esperou ver o sorriso da esposa, a D. Luizinha. Era costume ela dirigir-se ao vestíbulo e abraçá-lo, quando era a primeira a chegar do emprego. Mas não foi o que aconteceu. Em vez disso, encontrou-a a chorar no sofá da sala.

“O que é isso, querida?”

“Não sabes o que aconteceu?”

“Diz-me tu!”

“Uma grande desgraça!”

“O teu genro, o pai do teu neto! Minha querida filha…que desgraça tão grande, meu Deus!”

“O que foi? Até estou a ficar com falta de ar!”

“Deram-nos a notícia há pouco! O barco de pesca onde ia o teu genro, afundou-se ao largo de Peniche!”

“E o Luís, já sabe?”

“Já, coitadinho! Vinha da escola tão contente com um desenho para dar ao pai quando ele chegasse e soube logo que ouviu o choro da mãe, já perto de casa!”

O sr. Justino tirou então, do bolso do casaco, a folha rasgada que encontrara no chão e o desenho começou a ficar inundado de pingos de água a juntar-se aos que lá deixara o neto que tanto amava.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Baunilha e Chocolate

“Hoje é um dia triste!” disse a Teresinha sem olhar para onde ia. Ao seu lado, o cão castanho, Chocolate e a cadela creme, Baunilha, caminhavam a par sem parecer ouvir o que ela dizia.

“Dia triste, dia triste…” repetia a Teresinha.

Chocolate virou a cabeça para Teresinha e soltou um breve som, parecido com um latido de solidariedade.

“Nunca mais chegamos a casa! Estou farta desta chuva e estou de mau humor!”

Chocolate latiu outra vez, acompanhado pela Baunilha.

“Estou farta de dizer que em dias de chuva não se devia sair de casa! Ficávamos a dormir até à próxima Primavera e pronto! Hibernávamos!”

Alheios às lamentações de Teresinha, Chocolate e Baunilha largaram a correr até ao fim da rua da Paz, isto é, até ao Beco, onde já não havia saída. Lá, o sapateiro e o gato amarelo continuavam no seu lugar, desta vez sem sol a pintar a soleira da porta. Quando o Chocolate e a Baunilha chegaram o sapateiro exclamou:

“Olha que dois! Estão inseparáveis! Até parece que sempre estiveram juntos! Ainda me lembro do dia em que a Baunilha chegou aqui, toda sacudida a dar à cauda, a meter o nariz em tudo, a cheirar e a querer brincar! O Chocolate estava a fingir que dormia, com um olho aberto e outro fechado. Viu-a e fez de conta que não se passava nada. Mas eu bem vi quando ela se afastou. Ele levantou a cabeça a ver para onde ela ia. No dia seguinte, ela apareceu outra vez, novamente a cheirar e a espreitar. Olhou para o Chocolate, disfarçadamente, e começou a andar à volta dele, como que a pedir atenção. Então, ele levantou-se e começou a cheirá-la. Desde esse dia nunca mais se separaram!”

Quando o sapateiro acabou a história já Teresinha estava sentada há muito, num banco, com a cabeça entre as mãos à espera que ele se calasse.

“Essa história até parecia bonita, se não tivesse um final triste!”

“Ora essa! Até agora está a correr muito bem!”

“Pois, mas eles não vão ficar juntos para sempre!”

“Ai não? E como é que tu sabes?”

“Ouvi dizer que o Chocolate vai ser levado para o canil porque não tem dono e lá talvez até o matem!”

“Não!”

“Sim!”

“Não pode ser! O Chocolate e a Baunilha são inseparáveis! Temos de fazer alguma coisa!”

“Isso era se o Chocolate fosse adoptado pelos donos da Baunilha ou por alguém aqui da rua!”

“Se for preciso eu trato disso! Vamos arranjar um dono para o Chocolate ou ficarei eu com ele!”

“Fixe! Talvez o dia termine melhor do que começou!” rejubilou a Teresinha batendo as palmas.

Parecendo perceber, Baunilha e Chocolate começaram outra vez a brincar e a correr mas em sentido contrário como se no outro extremo da rua o dia estivesse radioso de sol.

domingo, 4 de outubro de 2009

Dia de Cerejas

“Hoje é dia de cerejas!” disse a Julinha, compondo a saia rodada que tinha herdado da avó.

A tia Inha, afadigada com as compras pareceu-lhe ter ouvido algo que não fazia sentido na conversa. “ É dia de quê?”

“De cerejas!”

“E o que é que isso quer dizer?”

“Quer dizer que andamos a falar de tantas coisas, umas atrás das outras e não conseguimos parar de falar!”

“E o que é que isso tem a ver com as cerejas?”

“Ora, não costumam dizer que as conversas são como as cerejas?”

“Lá isso…”

“Então! Ainda não nos fixámos num único assunto importante!”

“E o que é que consideras importante?”

“Importante é, por exemplo, falar da paz mundial, da fome no mundo, das armas nucleares, das catástrofes da natureza e a possível implicação do Homem no seu desencadeamento…”

“Então e falar do senhor Armando que está desempregado há um mês, da filha da Julieta cabeleireira que tem um curso de enfermeira e não consegue emprego, do senhor Manuel que teve de fechar o minimercado porque as grandes superfícies comerciais lhe tiraram a freguesia toda, não são assuntos importantes?”

“…”

“Pois!”

“Vamos lá, então, comprar cerejas e comê-las todas! Pode ser que, assim, os problemas locais e mundiais desapareçam de uma vez!”