Naquela noite a Lua brilhava como uma grande bola de cetim branco e frio sobre as casas da rua da Paz. Nos telhados, a sombras quadriculavam-se e as aves nocturnas soltavam pios de arrepiar e pôr os cabelos em pé. No ar, sentia-se uma brisa quente fora de época, uma vez que era o fim do mês de Outubro. Atrás das árvores um barulho de arrastar de pés parecia varrer todas as folhas caídas naquele Outono, ao longo do rio. De repente, um som de algo pesado atirado à água, quebrava o quase silêncio da noite.
******
Ao fim da tarde, Ana regressava a casa, depois de um dia de árduo trabalho no cabeleireiro. As costas, os pés, todo o corpo lhe doía, até porque andava em formação pós laboral e o simples facto de não se poder mexer muito na cadeira da sala de aula não contribuía para melhorar a tensão muscular que acumulara ao longo do dia. Rui, o seu colega de trabalho, precisava de tratar de um assunto de família e saíra mais cedo do serviço. O trabalho pesado sobrara para ela. Acabou por ter de varrer o salão, limpar os espelhos, dobrar as toalhas, ordenar as latas de laca e os frascos de produtos para o cabelo, limpar as escovas, tudo isto sozinha. Gostava do trabalho mas nada parecia fácil. Umas vezes as clientes não ficavam satisfeitas com a secagem do cabelo, outras com a maneira como lavava as cabeças, etc., etc.
Naquele dia resolvera atalhar caminho pelo rio quando, ao passar numa curva do caminho, junto ao castanheiro velho, esbarrou com o seu colega Rui que, com o rosto branco que nem cal da parede, a cumprimentou como se não a tivesse visto ainda nesse dia.
“Olá! Boa noite! Estás boa?”
“Olá! Então por aqui? Não ias para casa da tua avó tratar de um assunto de família?”
“Sssim! Já está tratado!”
“Então o que fazes aqui?”
“Ora, vim apanhar ar!”
“Aqui, sozinho?”
“Então, tu também aqui estás!”
“Sim, mas eu vou para casa!”
“E eu também! Adeus! Até amanhã!”
“Até amanhã, Rui!” Ora esta – pensava a Ana – ele há com cada uma! G’anda lata! O que é que ele andaria aqui a fazer?
Sem pensar mais nisso, Ana continuou o seu caminho, não sem olhar para trás por várias vezes, não fosse o diabo tecê-las.
No dia seguinte foi a primeira a chegar, como era costume. Passada uma hora chegou o Rui com cara de quem não tinha pregado olho toda a noite.
“Isso é que foi farra!” disse a D. Catarina, proprietária do estabelecimento.
“Eh! Eh!”- sorriu Rui à laia de resposta.
Ana franziu o sobrolho. Ele não tinha estado em farra nenhuma, porque é que não dizia a verdade?
Rui olhou para ela, como se implorasse cumplicidade e Ana calou-se, para não deixar ficar mal o amigo.
Mais tarde, ao fim da manhã, chegava o jornal local do dia que, na primeira página, apresentava em letras garrafais “ Corpo de septuagenária resgatado do rio já sem vida, junto à curva do castanheiro!”.
Ana arrepiou-se. Lembrou-se então que o local onde acharam o corpo, era precisamente onde se havia cruzado abruptamente com o Rui, na noite anterior. Olhou para o colega mas ele fugiu com o olhar. Ana ficou aflita. O que havia de fazer? Falar com ele? E se ele ficasse furioso e também ela, frágil e leve, pudesse ser atirada ao rio com toda a facilidade? O gesto de secar o cabelo a uma cliente parara para dar lugar à visualização da cena da sua execução e afundamento. A cliente protestou:
“Ai, a minha orelha!”
“Desculpe, D. Alzira! Foi sem querer!”
“Há que ter cuidado!”
“Sim D. Alzira, peço desculpa mais uma vez! Estava distraída!”
“ É sempre assim…” E a cliente lá ia desenrolando o rol da sua pouca sorte. Daquela vez a orelha, no outro dia ficara com uma mancha de tinta na blusa branca. Já para não falar na cor do cabelo, que na semana passada tinha ficado verde, depois de uma descoloração.
Ana perdera-se nos seus pensamentos enquanto ia olhando para o Rui de soslaio. Este parecia cada vez mais incomodado à medida que Ana olhava para ele. Até que, à hora de almoço, como era costume, saíram juntos. Pelo caminho, Ana resolveu ir directa ao assunto:
“O que estavas a fazer ontem naquele sítio, aquela hora?”
“E tu? Também lá estavas e eu não perguntei nada!”
“Não desvies a conversa! Diz lá o que estavas a fazer! Não viste nada estranho? Foi no local onde encontraram a velhota!”
“ Não sei, não vi nada…até porque…”
“ Até porque…continua!”
“Até porque eu estava, ou melhor tinha acabado de estar com aquela pessoa que tu sabes! Acabámos tudo!”
“Ahn?”
“Sim, tínhamos acabado tudo quando tu apareceste!”
“Então o assunto de família era esse?”
“Sim!”
“E a tua avó?”
“Sei lá, deve estar na aldeia! Há uma semana que não a vejo!”
“Oh Rui, dá cá um xi e um beijinho! Se soubesses o susto que tu me pregaste!”
“Eu? Porquê?”
“Isso agora não interessa! Vamos mas é almoçar depressa, que ainda temos de ir comprar umas coisas para festejar o Halloween!”
No fim da tarde, Ana resolvera voltar a casa pelo caminho da véspera. Estava um pouco ventoso mas não tão quente. A certa altura, quando ia a passar na curva onde encontrara o Rui no dia anterior, ouviu um ruído estranho, como se alguém arrastasse os pés. Virou-se de repente e soltou um grito de pavor…alguém muito pequeno mas pesado olhava para ela com ar de quem queria agarrá-la. Ana, impulsionada por uma força que desconhecia, virou-se de repente e desatou a correr o mais depressa que conseguiu. Quando chegou a casa, sentia o coração na garganta. A mãe perguntou-lhe o que tinha mas ela nem conseguia falar.
“Sabes o que aconteceu ontem, ao fim da tarde, lá para os lados do rio, na curva do castanheiro?”
“Sim, mãe, encontraram uma velhota!”
“Tu também tens a mania de vir por aquele caminho!”
“Deixe lá mãe, nunca mais venho por lá!”