segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O barco rasgado

No caminho para casa o Sr. Justino encontrara uma folha de papel rasgada e manchada com pingos que pareciam de água. Por curiosidade, apanhou-a do chão e mirou-a de um lado e doutro na esperança de encontrar alguma palavra escrita. Não havia nada escrito. Apenas num dos lados, um desenho que parecia ter sido feito por uma criança, representava uma parte de um barco rodeado de ondas, talvez um barco de pesca. Sobrevoando o barco, algumas das que deviam pertencer a um conjunto de gaivotas, dava a sensação de que o barco estaria já cheio de peixe. Ao longe, na linha do horizonte, meio sol alaranjado espalhava os seus raios amarelos iluminando a paisagem marinha. A folha tinha sido rasgada, mas deixava adivinhar um bonito desenho, rico em pormenores e cheio de esperança. Esperança transmitida pelo raiar do sol, pela promessa de boa pescaria, pela alegria da chegada ao lar com os cabazes cheios. Quem teria rasgado a folha e porquê? Onde estaria a outra metade? Quem seria o autor do desenho?

Era fim da tarde, meteu a chave à porta e esperou ver o sorriso da esposa, a D. Luizinha. Era costume ela dirigir-se ao vestíbulo e abraçá-lo, quando era a primeira a chegar do emprego. Mas não foi o que aconteceu. Em vez disso, encontrou-a a chorar no sofá da sala.

“O que é isso, querida?”

“Não sabes o que aconteceu?”

“Diz-me tu!”

“Uma grande desgraça!”

“O teu genro, o pai do teu neto! Minha querida filha…que desgraça tão grande, meu Deus!”

“O que foi? Até estou a ficar com falta de ar!”

“Deram-nos a notícia há pouco! O barco de pesca onde ia o teu genro, afundou-se ao largo de Peniche!”

“E o Luís, já sabe?”

“Já, coitadinho! Vinha da escola tão contente com um desenho para dar ao pai quando ele chegasse e soube logo que ouviu o choro da mãe, já perto de casa!”

O sr. Justino tirou então, do bolso do casaco, a folha rasgada que encontrara no chão e o desenho começou a ficar inundado de pingos de água a juntar-se aos que lá deixara o neto que tanto amava.

3 comentários:

O Profeta disse...

A meiguice dos teus olhos
Enternece a alma mais dura
Sei-te em cada batida de coração
Na verdade da água pura

A verdade da terra
De verdadeira verdade se veste a tua alma nua
O mundo conhece teus passos
O teu destino impresso nas pedras de uma rua

Mágico beijo

Meg disse...

Adorei!!!!!!!Parabéns!!!!!!!!!!!!!!!
tem a sensibilidade de arrepiar, é de uma maturidade de mestre, Flora, muito lindo, juro!!
Beijo e força. nem todos os contos terminam em felicidade, como tudo na vida!
beijo
Meg

Luís disse...

Flora, desculpa só ter visto agora esta história "o barco rasgado"m mas temos andado tão ocupados com toda esta parafernália de papéis que nos põe completamente esgotados logo no início do ano. Esta história é de uma tremenda sensibilidade e comovente que me fez vir as lágrimas aos olhos.
Obrigado por este lindíssimo texto. Por vezes, também precisamos chorar, faz-nos bem, caso contrário, transforma-mo-nos em seres frios e insensíveis e eu sempre fui e pretendo continuar a ser uma pessoa sensível. Continua e um grande beijinho.
Luís