quinta-feira, 30 de julho de 2009

Angústia

Quando Merlin chegou cá fora, pegou na mão da Tatá e perguntou à Bé: “Estás bem?” “Sim!”- respondeu ela. “Mas foi cá um destes sustos!” “E agora?” – perguntou Merlin. “Para onde vamos?” “Vamos procurar a Luna!”- respondeu a Bé. “Vocês os dois vão por aquela rua e eu vou por esta!” “Não!” – retorquiu Merlin. “Não podemos separar-nos!” ” Nem penses!” –respondeu a Bé “Se não nos separarmos temos menos hipóteses de encontrar a Luna! E tu bem sabes como ela não tem sentido de orientação!” “Sim, se a Luna quiser ir para a esquerda o melhor é virar à direita!” - observou Merlin. “Bem, isso agora não interessa!” – interrompeu a Tatá. “Vamos mas é traçar um plano! Comecemos por fazer um mapa do local! Aqui estamos nós!” – e a Tatá fazia uma cruz com um pauzinho de fósforo queimado num pedaço de papel que apareceu naquele momento arrastado pela deslocação de ar provocada pela passagem de um automóvel. Era um carro conduzido por uma senhora simpática acompanhada por um homem grande e de ar feliz e em cujo banco traseiro, repousava um cavaleiro de papelão montado numa tenaz, de papel.

“Então, prestem atenção!” – reclamava a Tatá. “Aqui é a torre da igreja, onde nós estamos! Aqui ao lado é o quintal do senhor Avelino onde está o carvalho de onde vocês caíram em cima do gato amarelo! Vamos analisar o local novamente!” – acrescentou a Tatá, enrolando o pequeno mapa e metendo-o debaixo do braço. Encostados ao muro que separava o quintal do senhor Avelino da rua da igreja, os três ratinhos foram caminhando cautelosamente até ao portão da entrada. Uma vez lá, passaram por baixo, em direcção à velha árvore e começaram a olhar primeiro para cima, à procura do ramo onde estiveram pendurados e, depois, quando o avistaram, seguiram com o olhar o trajecto da queda, para calcularem o local provável da “aterragem”. “Foi aqui!” – exclamou a Tatá com toda a segurança. “Vêem estes pêlos amarelos e muitas marcas de patas de gato e patinhas pequenas? Tenho quase a certeza de que foi aqui que os dois caíram! Agora reparem nestas marcas, como se alguém tivesse rebolado!” Merlin e Bé estavam admirados com tão grande perspicácia. “Isto é matemático meus caros!” – justificava a Tatá. “Vamos ver onde acabam as marcas do rebolado! Reparem, acabam aqui, ao pé desta cameleira branca!” “Branca?” – admirou-se a Bé. “Sim, branca, porque dá flores brancas!” “Reparem, está tudo cheio de pétalas dessa cor. Como se alguém tivesse dado um abanão à arvore e ela tivesse deixado cair as pétalas das suas flores!” A Bé abanava a cabeça em sinal de assentimento enquanto analisava as marcas de unhas deixadas por alguém que parecia ter subido pela trepadeira, junto à parede do edifício ao lado. Era o velho teatro. Nele actuaram, noutros tempos, grandes nomes da cena nacional, mas que agora, recatada e pacatamente, viviam na Casa do Artista, sem o brilho e os aplausos dos tempos de glória. “Parece-me que a Luna pode ter subido por aqui!” – exclamou a Bé. “Mas porquê? Se eu, durante a queda lhe gritei: Espero por tiiiiiii…no campanááááário…” “Isso não sei! Mas algo me diz que a Luna foi atraída por uma força estranha, talvez vinda daquela janela!” – garantiu a Bé. “Ela não teria feito esta perigosa escalada sem uma boa razão!” – acrescentou. “ Ou sem um boa dose de louco entusiasmo, como é seu costume!” – defendeu Merlin. “Devemos subir também a trepadeira para tentar encontrar Luna ou devemos ir outra vez para o campanário e esperar que ela vá lá ter?”

Desta vez, os três ratinhos tinham sérias dúvidas sobre o caminho a tomar e se voltariam a encontrar-se com Luna. Sentiam uma angustiante dúvida que, acreditavam, tão cedo não iam conseguir resolver!...

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Tenacidade

Um fio de luz atravessava o vidro partido da janela do camarim do velho teatro, batendo nos olhos de Luna. Esta, acordou atordoada e confusa. Colocou a patita direita sobre os olhos, para os proteger da claridade. Tentou reconhecer o local e recordar a razão pela qual se encontrava ali. Olhando à sua volta, sobressaltou-se com a visão do cavaleiro a escorregar pela tenaz e recordou-se de tudo. Subitamente, uma enorme dor de estômago fê-la esquecer, por momentos, as circunstâncias e as razões da sua presença naquele local. Certamente porque não comia nada há, pelo menos, três dias. Ocorreu-lhe, então, procurar nos camarins e pelo chão qualquer coisa que se pudesse trincar. Fartou-se de procurar por todo o lado e nada. Quando estava quase a desistir, viu brilhar qualquer coisa ao fundo do corredor. Era uma embalagem meia desfeita e aparentemente vazia, de bolachas de chocolate. Espreitou lá para dentro sem grande esperança. Porém, bem lá no fundo, descobriu bocadinhos de bolacha que exalavam um delicioso cheiro a chocolate com creme. Estava salva! Começou rapidamente a rasgar o plástico brilhante prateado da embalagem. Finalmente conseguiu e, encostando-se à parede, comeu aquilo que lhe pareceu o mais delicioso dos manjares.

Estava a comer o último pedacinho quando o barulho de uma porta a abrir a fez estremecer. Escondeu-se, assustada. Eram dois homens. Um deles era o tal que estava vestido de preto na peça e que caminhava com passos pesados e decididos para o local onde estava a tenaz. Fez uma cara de grande satisfação e deu uma volta pelos outros camarins, para ver se não havia mais nada esquecido. Voltando ao local inicial, soltou uma frase engraçada: “-Graças à minha tenacidade *…recuperei a tenaz!!!” Pegou nela com cuidado e, afastando-se a passos largos de onde a tinha encontrado, atravessou o palco e saiu da sala dirigindo-se ao carro, onde o aguardava uma senhora, pequena e simpática.

Espreitando por um buraco que conseguiu abrir, à pressa, no papel de que era feita a tenaz, enquanto o homem andava pelos outros camarins, Luna conseguiu ver que o carro conduzido pela simpática senhora se dirigia agora para longe da Rua da Paz, talvez para fora do perímetro usualmente frequentado pelos três ratinhos. O homem não escondia o seu contentamento por ter conseguido recuperar a tenaz “- Uma coisa que deu tanto trabalho a fazer!” “Assim, se voltar a ser precisa, já não há problema!” Luna conseguia ver a paisagem pela janela do carro mas aos solavancos. “Só espero que não me encontrem aqui! Senão, estou perdida! São capazes de me mandar desta para melhor! Ou antes, para pior!”

Luna estava muito longe de se encontrar com os seus irmãos mas, pelo menos, estava viva!”

À porta do campanário, Merlin, Bé e Tatá tinham conseguido roer o último pedacinho de madeira que os levaria à liberdade. Preparavam-se para passar pelo buraco, agora muito maior, quando sentiram passos pesados pararem junto à porta. Ouviram meter a chave e dar duas, três, quatro voltas. Era o sineiro que, finalmente, abria a pesada porta de madeira. “Afinal tanto trabalho para nada!” – disse a Bé. “ E eu que tive de roer esta madeira toda podre e mal cheirosa!” –rematou Merlin. “Calem-se e escondam-se!” –avisou a Tatá. “Não tarda nada, descobrem-nos e depois é que nunca mais nos safamos!” Os três ratinhos encolheram-se o mais que puderam atrás do primeiro degrau. O sineiro entrou, limpou os pés e fechou a porta com grande estrondo. Olhando para o fundo da porta, viu que agora entrava um feixe de luz. Fez uma careta e praguejou: “- Malditos ratos! Já não bastava o caruncho! Agora até eles roem a porta! Amanhã, já lhes trato da saúde! É só ir à drogaria a acabo-lhes com a raça!”.Os três ratinhos tremeram só de imaginar o destino que o sineiro lhes prometia. Os três engoliram em seco. Então o homem começou a subir os degraus lentamente e, a cada passo, ouvia-se ranger a madeira. Suspiraram de alívio quando sentiram que ele tinha chegado ao último degrau. Com muita cautela, começaram a sair pelo buraco na porta, um a um, em fila. Primeiro a Bé, depois a Tatá e a seguir o Merlin. Estavam finalmente na rua.

* (constância, perseverança, persistência)

sábado, 25 de julho de 2009

Às vezes as coisas não são aquilo que parecem!

Quando Luna atravessou o espelho, correndo atrás da menina quanto podia, sentiu de repente que o chão lhe fugia debaixo dos pés. Isto é, a lareira acabava abruptamente e Luna deu um valente trambolhão, caindo aos pés de um homem enorme, todo vestido de preto que, nervosamente, dava a mão à menina dizendo-lhe, para a sossegar, que estava tudo bem e que não tivesse medo. A menina deu um suspiro breve de alívio e, virando-se, preparava-se para voltar a atravessar o espelho mas em sentido contrário. Luna estava aturdida com tais manobras, ainda mais que a queda da lareira para o chão de madeira não tinha sido propriamente suave. Esfregava ela a coxa direita, quando o homem de preto lhe dá um grande pontapé atirando-a para as chamas cor de laranja que, afinal não passavam de uma magnífica imitação, com um efeito especial produzido por uma lâmpada normal de tungsténio embrulhada em papel celofane. Que grande confusão, pensava Luna enquanto se esquivava de uma menina a correr vestida Rainha Branca de peça de xadrez e duas senhoras que pareciam umas Torres. Enfim, estava numa casa muito estranha! Parecia um baile de máscaras mas, em vez de estarem divertidas, as pessoas pareciam nervosas. Ouvia sussurrar: “Calem-se! Vai abrir o pano!” Espreitando por entre as falsas chamas, Luna apercebia-se, agora, que estava perante uma audiência cheia de olhos cintilantes e ansiosos. Que tola -pensou. Saltara da janela do velho teatro, directamente para o palco onde se estava em plena representação de uma peça. E agora, como havia de sair dali? Se andasse para a frente, precipitava-se para o público que, certamente, sairia em pânico e aos gritos, atropelando-se uns aos outros. Se andasse para trás, arriscava-se a levar uma pisadela dos reis e rainhas, pretos e brancos. Ainda por cima, descobrira que havia lá duas gigantescas gatas, uma branca e outra preta. Ao pé delas o gato amarelo parecia um ratinho, ou seria uma ratazana!

Entretanto, no campanário da igreja, os três ratinhos davam voltas à cabeça, não querendo, sequer, pensar no pior. A Bé ainda conseguiu começar a falar sobre a possibilidade do gato amarelo ter conseguido apanhar a Luna depois do bombardeamento de pedras mas o Merlin e a Tatá nem a quiseram ouvir. Havia que agir, e depressa.

Desataram os dois a descer pela escadaria abaixo, logo seguidos da Bé que, aos gritos e ais, ia tropeçando, de vez em quando, nas caudas compridas e rosadas dos seus amigos que, por sua vez, também gritavam e praguejavam cada vez que a Bé os pisava. Foi uma descida interessante, em que uns gritavam porque ficavam com as caudas presas e outra gritava porque tropeçava nas ditas. Quando chegaram à base da torre da igreja verificaram que a porta estava fechada. E tão depressa não seria aberta, pois o sineiro tinha ido lanchar e ainda não eram horas de puxar a corda do sino outra vez. “Que horror!” - dizia a Bé. “Nunca vou esquecer …” Mas não a deixaram continuar. Merlin descobrira uma passagem por baixo da pesada porta de madeira e preparava-se para passar quando verificou que o buraco era demasiado pequeno. “Já sei! – disse a Tatá. “Vamos todos roer um bocadinho do buraco e assim já devemos conseguir passar!” E assim fizeram. Passaram uma boa meia hora a trincar madeira velha e podre e a cuspir para o lado. “Que sabor execrável!” – constatou Merlin. “Preferia comer alface!” – que não era, de todo, o seu prato favorito.

No teatro, as coisas não tinham melhorado. Luna acabava de ter uma ideia que poderia dar resultado. Á frente da lareira havia uma tenaz com um cavaleiro de cartão em posição de quem estava a escorregar. Lembrou-se, então, de se agarrar bem ao cavaleiro e esperar que o tirassem do lugar podendo, deste modo, esgueirar-se para fora de cena sem que ninguém pudesse dar conta dela. Se assim pensou, melhor o fez. Na cena seguinte, a lareira foi retirada para o lado esquerdo de quem olha para a frente do palco e a tenaz foi removida. Removida é uma força de expressão. A tenaz foi atirada para um canto, fazendo com que a nossa amiga, agarrada com quanta força tinha, tivesse sido projectada contra a parede interior de um dos camarins o que lhe provocou uma enorme dor de cabeça. Começou uma música engraçada e era tempo de se escapar dali para fora. O pior é que, após a pancada, Luna começou a sentir uma tontura, acabando por desmaiar, ficando ali, abandonada à sua pouca sorte, sem ajuda, completamente entregue a si mesma.

Com o final da peça, os actores começaram a sentir o alivio da responsabilidade que pesara sobre eles, enquanto iam despindo as roupas e as personagens, recebendo os parabéns de amigos e familiares por terem desempenhado tão bem os seus papéis. A sala foi ficando vazia. Os últimos a sair foram os técnicos de som e os responsáveis, vestidos de preto, bem como alguns actores mais velhos e respectivos familiares. Carregaram-se os adereços de palco, desmontaram-se os cenários, as últimas luzes apagaram-se e tudo o que tinha de ser levado dali foi carregado e transportado para outro lugar. Tudo, excepto a tenaz com o cavaleiro, ficando Luna desmaiada, atrás do adereço, caída no chão.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Onde estará Luna?

“Dizem que os campanários são lugares onde se pode marcar o tempo, através dos toques dos sinos! Regula-se assim a vida dos habitantes que vivem à sua volta!” – comenta a Bé. “Sim! - concorda a Tatá. “ Também emitem sons característicos que podem ter significados diferentes e muito importantes para quem os ouve!” – acrescenta. “Sinal de incêndio, de morte, de casamento e outros!” “ Pois, por isso é que sino vem da palavra latina signum que significa sinal!“ -completou a Bé. "Dizem que nas invasões francesas…” E durante algum tempo, as duas amigas continuaram a dissertar sobre as características e vantagens dos campanários, enquanto subiam a escadaria em caracol da torre da velha igreja, de tal maneira que nem se aperceberam da respiração ofegante de alguém que, com alguma dificuldade, subia ansiosamente os mesmos degraus de madeira, já meio comidos pelo caruncho, que o sineiro deixara apoderar-se discreta e perigosamente, em quase toda a sua altitude. Só o ranger de um degrau mais fragilizado fez com que as duas amigas olhassem para baixo, não sem um pequeno sobressalto, que rapidamente se transformou em alívio. Era Merlin quem subia afincadamente a escadaria, na ânsia de chegar ao mesmo tempo ao cimo da torre que há muito desejava conhecer. Abraçaram-se de contentamento, pois a última aventura ia resultando em tragédia e foi com enorme euforia que reviveram e recontaram os momentos mais críticos. Enquanto falavam os três ao mesmo tempo, o olhar de Merlin procurava qualquer coisa ou alguém que parecia faltar. Luna não se encontrava junto das outras ratinhas!...

Voltemos, então, um pouco atrás na história. Quando Luna se atirou do velho castanheiro, juntamente com Merlin, caiu em cima do gato amarelo e foi salva, tal como o amigo, pelas pedradas certeiras da Tatá e da Bé. Enquanto o gato desaparecia rapidamente, assustado e confuso, Merlin tombou para direita, enquanto que Luna tombou para a esquerda. Ora, o sítio onde Luna caiu era ligeiramente inclinado e escorregadio e esta foi rolando, rolando, até que parou, ou melhor, foi travada, por uma cameleira que, emergindo do solo, se elevava majestosamente, exibindo magníficas flores brancas que, com o embate, deixaram cair uma chuva de pétalas, ficando tudo coberto de uma camada tão fina e bela como a neve. Luna ficou atordoada e, olhando para cima para ver de onde caia tão grande quantidade de branco, avistou uma janela através da qual uma menina de cabelos encaracolados, presos por um laço azul, parecia discursar sobre qualquer coisa, enquanto olhava para baixo de quando em vez, para logo se afastar com gestos largos, como que iniciando um bailado. Luna esfregou os olhos e, tentando recompor-se da queda, conseguiu levantar-se e seguindo a menina com o olhar, subiu pela trepadeira que envolvia a curiosa janela da casa que se erguia à sua frente. Com algum esforço conseguiu subir até lá acima e, espreitando pela vidraça, inadvertida mas silenciosamente, empurrou-a vendo e ouvindo algo que fez com que duvidasse dos seus próprios olhos e ouvidos. A menina estava numa sala, grande e bem decorada, com móveis que pareciam pertencer a uma época passada e nada condizente com os dos pacatos e pobres habitantes da Rua da Paz. Falava com alguém, mas parecia não se encontrar mais ninguém naquela sala. Ao fundo, sobre uma lareira imponente, lindamente decorada e onde bailavam chamas alaranjadas, algo brilhava com intensidade, como um chamamento, uma atracção. Era o espelho mais belo que Luna alguma vez vira. Então, aconteceu uma coisa extraordinária: o espelho começou a diluir-se numa espécie de neblina e a menina, subindo por uma cadeira com alguma dificuldade mas decididamente, atravessou o espelho como se fosse a coisa mais natural do mundo. Durante alguns instantes Luna não quis acreditar no que os seus olhos viam mas, como era possuidora de uma grande curiosidade, rapidamente saltou da janela para o chão e correndo para cima da cadeira, galgou a lareira, conseguindo passar para o outro lado do espelho, antes que a neblina se transformasse novamente em vidro.

domingo, 19 de julho de 2009

Os Três Ratinhos

Merlin, Be e Luna eram três ratinhos irmãos que viviam no quintal da casa do sapateiro do Beco da Rua da Paz e andavam sempre juntos. Por vezes também se juntava a eles a Tatá que era amiga, de longa data, do Merlin. O que mais gostavam de fazer, era subir a lugares muito altos, para verem tudo o que a sua vista podia alcançar.

Passavam pelas mais extraordinárias aventuras. Certa vez, subindo a um carvalho enorme, ouviram um piar muito estranho de vozes que, em coro, pareciam desesperadas. Aproximaram-se um pouco, mas não viram nada nem ninguém. Passados, nem dois minutos, chegou um pequeno Picanço Barreteiro com qualquer coisa na boca, poisando num ramo ali próximo. Aventurando-se um pouco mais, chegaram-se à frente e acabaram por descobrir que estavam muito perto de um ninho com quatro pequenos Picanços em cujos bicos a mãe colocava um insecto que tinha ido buscar para lhes saciar a fome. O Picanço Barreteiro é uma ave migratória, que pode nidificar em várias árvores, entre elas os carvalhos e cuja característica mais marcante é a cor castanho-avermelhada na coroa e nuca, sendo mais arruivada nas fêmeas. Os ratinhos nunca tinham visto nada assim, não só porque as aves eram muito bonitas,mas também, porque lá em casa, embora já fossem todos crescidos, se recordavam bem que, quando nasceu a Dadá, não era deste modo que a mãe a alimentava.

Lá em baixo, o gato amarelo não cabia em si de contente ,por ter encontrado com tanta facilidade, tal quantidade e tão variados acepipes para o jantar.

Quando deram pela sua presença, já era tarde demais para descer. Estavam eles a pensar no que haviam de fazer à sua vida, quando a Bé teve a ideia de subirem para o ramo mais alto do velho castanheiro e, balouçando-se, tentarem cair no parapeito da janela do senhor Avelino, que ficava na casa mesmo ali ao lado. Assim fizeram. Primeiro saltou a Bé, que era a mais decidida, depois foi a Luna. O Merlim, que em tudo era um perfeccionista, queria fazer um salto muito elaborado e isso envolvia muitos preparativos. Finalmente o Merlin anunciava, em voz alta: “-Aqui vou eu!” É preciso dizer que Merlin era um ratinho muito brioso. Quando metia na cabeça que havia de fazer uma coisa, fazia-a bem feita e não havia quem lha tirasse da ideia. Por isso não era de estranhar que, sendo o último, precisasse de se chegar atrás para ganhar balanço, de forma a que o salto saísse na perfeição. Só que, durante este recuo, escorregou numa folha solta e ficou pendurado no ramo da árvore, sem que ninguém lhe pudesse valer. A Bé e a Luna entraram em pânico!...Ora, neste momento, ia a passar, mesmo perto do gato amarelo, a Tatá que, apercebendo-se do perigo que o amigo corria, imediatamente pôs em pratica uma estratégia para o salvar. Ela tinha, realmente, uma grande presença de espírito. Pegando numa espiga de milho que, juntamente com outras, estava amontoada no pátio da casa, vai de se agarrar a ela com tanta força que, empurrando os pés com destreza, conseguiu fazer soltar uma rajada de grãos de milho mesmo na direcção do focinho do gato amarelo, fazendo-o ficar furioso e correr logo de seguida atrás dela e que ,por pouco, não foi apanhada.

Merlim estava mais apavorado com a possibilidade do gato amarelo apanhar a Tatá do que de cair em cima do focinho dele. A Bé e a Luna sustiveram a respiração por segundos, que foi o tempo que a Tatá demorou a enfiar-se num buraco da velha árvore. Enquanto se baloiçava na árvore, Merlim só pensava em como se tinha metido naquele sarilho e como já não havia nada a fazer senão sofrer as consequências, fossem elas quais fossem. Numa inspiração momentânea, Luna teve uma ideia que talvez pudesse resultar para salvar o amigo Merlin de se estatelar: Puxando uma folha do ramo de onde tinha saltado, conseguiu içar-se e foi pôr-se ao lado de Merlin, dizendo muito baixinho: “-Amigo, agarra-te à minha cauda com a patinha esquerda enquanto eu penso numa maneira de nos tirar daqui! Vês lá em baixo um monte de feno? Se fizermos pontaria juntos, podemos balançar-nos e cair em cima dele, em vez de partirmos o pescoço!” Merlin não queria. Achava que o mais seguro era continuar balançando no troco da árvore à espera de uma corrente de ar que o levasse para um sítio seguro e, de preferência, quentinho. Luna insistia, a Bé gritava, a Tatá chorava e Merlin estava a entrar em depressão.

No meio desta confusão, a mãe Picanço começava a ficar furiosa com tamanha barulheira e desatou a dar bicadas nas patitas do Merlin, que gritava desalmadamente. Não aguentando mais, agarrou-se com toda a força à cauda da Luna e largou o ramo. A Luna nunca pensou que o Merlin pesasse tanto. Ia ficando sem cauda. Então, gritando de dor e de desespero, Luna largou também o ramo, indo cair os dois ao mesmo tempo, não no monte de feno, mas no monte de pelo amarelo do gato que estava a olhar para cima, a abanar a cauda, excitado, sorrindo e lambendo os beiços, com a perspectiva de apanhar os dois de uma assentada. Assim que os ratitos caíram, o gato deitou-lhes as unhas e começou a atirá-los ao ar. Luna e Merlin gritavam aterrorizados. Eram atirados ao ar e deixados cair sem dó nem piedade pelo cruel gato amarelo, que via nesta brincadeira mais uma maneira de passar o tempo do que propriamente de se alimentar, pois tinha acabado de lanchar uma rodela de chouriço que o sapateiro lhe tinha trazido de casa.

Estava ele nesta brincadeira, quando desaba uma tempestade de pedras, não se sabe de onde, deixando o gato desorientado. Nem tempo teve de ver de onde elas vinham e começou a correr em direcção à loja do sapateiro refugiando-se atrás de um monte de botas e sapatos ,que esperavam pela sua vez de serem consertados.

“Foi por um triz!” - Disseram em uníssono a Bé e a Tatá. “Se não tivéssemos encontrado este monte de areia, de onde começámos a atirar grãos em direcção ao gato amarelo, com as nossas patinhas traseiras, ainda hoje o gato ia papar uma jantarada daquelas!”

Dito isto, fugiram dali para fora e dirigiram-se ao campanário da Torre da Igreja, que há muito lhes tinha despertado a atenção.

Para saberes mais sobre o Picanço Barreteiro, Ave do Ano 2009

http://www.spea.pt/index.php?op=avedoano2009

segunda-feira, 13 de julho de 2009

A Luzinha Mágica

Numa janela da casa da esquina do Beco da Rua da Paz vivem o João e o Sebastião. Eles passam o tempo dentro de água. Por vezes, o Sebastião bate com a cabeça no vidro mas, entretanto, aparece a Luzinha Mágica, como lhe chama o João, acompanhada de um som que parece um clic e ele lá vê o caminho. Às vezes, eles andam a brincar às escondidas, ou fazendo corridas, um atrás do outro, mesmo de noite. É difícil brincarem nestas circunstâncias mas, clic, a Luzinha Mágica aparece sempre nas situações mais problemáticas. Por exemplo, quando o Sebastião anda à procura do almoço no meio das pedrinhas de areia, nem sempre vê muito bem mas a Luzinha Mágica aparece na altura certa e ele lá encontra a paparoca. Outras vezes, o João anda à procura dos brinquedos mas está uma escuridão que nem se vê um palmo à frente do nariz: lá vem a Luzinha Mágica e ele encontra tudo num instante. Um dia, o aquário foi levado para junto da janela da casa de banho, não se sabe por quem. De repente, só se ouviu um enorme som contínuo de água a correr. Acharam estranho, porque a vida no aquário era mais ou menos pacífica e nunca acontecia nada de extraordinário, excepto daquela vez em que o Sebastião ficou a boiar de cabeça para baixo e barriga para cima, sem se conseguir virar. Tinha sido o cabo dos trabalhos se a Luzinha não tem aparecido para iluminar o campo de visão e tudo ser reposto na devida ordem. Mas, daquela vez, o caso parecia ser mais sério. Até porque, nem barriga, nem olhos, nem barbatanas, tudo pareceu um turbilhão, uma catástrofe de pernas para o ar. A água começou a jorrar do aquário para um enorme recipiente branc,o que tinha ao longe uma espécie de cascata, com umas coisas brilhantes e redondas em cima. Parecia que estava a haver um maremoto mas de água doce e sem ondas. Era como fazer surf sem prancha, ou andar de escorrega na água. Quando chegaram lá abaixo, suspiraram de alívio, por não terem perdido nenhuma barbatana, mas foi cá um susto. O João ainda fez um galo na testa porque caiu com muita velocidade e foi bater na parede branca, por baixo das coisas brilhantes e redondas, mas depois até lhe soube bem, porque tinha um espaço muito maior para nadar à vontade. Demorou foi muito tempo a encontrar o Sebastião que, estonteado com o salto, ficou imenso tempo a olhar para todos os lados sem saber para onde ir. O certo era que o novo aquário era muito maior e podiam brincar às escondidas sem correrem o risco de baterem com a cabeça nas paredes. Era muito mais espaçoso. Já a Luzinha é que nunca mais foi vista: as paredes eram brancas e opacas, não se via nada lá para fora. Estavam eles a pensar nisto, quando uma espécie de rede de pesca os apanhou um a um e os meteu novamente dentro do aquário de vidro. Foi como estar a comer um gelado e ele cair ao chão. Ou como estar a brincar com um balão e ele rebentar. Foi pena, estava a saber tão bem aquela sensação de liberdade. Repararam que a água estava mais límpida e a areia mais branca mas era um espaço consideravelmente mais pequeno. Então, olharam através das paredes de vidro e viram a Luzinha a brilhar como um enorme sorriso protector e isso trazia muito maior felicidade às suas vidas do que viverem num espaço maior.

Presente de Natal

No fundo da rua da Paz havia um beco sem saída onde trabalhava um sapateiro. No trajecto de casa para a escola uma velhota vendia bolos à porta de casa e o João parava sempre para trocar dois dedos de conversa com ela. No regresso da escola a velhota dava-lhe, com um sorriso, os bolos que sobraram e ele ia todo contente para casa como se levasse um tesouro.

Ao fim do dia o sapateiro reunia a família e contava sempre a mesma história: como tinha tido uma vida difícil enquanto criança e como um irmão mais velho o tinha convencido a deixar a serra e a aceitar um trabalho na cidade como aprendiz de sapateiro.

A mãe fazia uma grande cafeteira de café com leite e o João punha em cima da mesa um embrulho com os bolos que tinha recebido como recompensa por saber ouvir e ser um rapaz atinado.

O serão era passado, assim, a ouvir histórias e a comer os bolos ensopados no café com leite. Todos os dias era a mesma coisa. Um dia o João não trouxera os bolos. No caminho para a escola parara como era costume à porta da velhota, trocara algumas palavras, despediu-se e lá foi. Mas no regresso a casa ela não estava lá. Ter-se-ia dado o caso de ter vendido os bolos todos? O João bateu à porta. Lá de dentro ouviu-se um gemido. Com esforço conseguiu entrar pela janela lateral que tinha um vidro meio partido e, chegado à cozinha, deu com a velhota caída no chão, um banco tombado, uma panela de sopa entornada e o gato, que assustado em cima do armário da cozinha, não se atrevia a descer. João foi a casa, a correr, pedir ajuda à mãe, mas ela não estava. Então, saiu a correr na direcção contrária para pedir ajuda ao pai, mas ele tinha ido entregar um trabalho a casa de um cliente. O que fazer? Foi então que o João se lembrou de pedir ajuda ao Menino Jesus. Depois, no Natal, havia de arranjar maneira de o compensar. Não sabendo como, lá conseguiu levantar a velhota e sentá-la num banco. Tinha tido uma tontura. No dia seguinte foi ao médico que lhe receitou uns medicamentos e melhorou. Dali em diante os bolos não faltaram ao fim do dia.

Chegou o Natal e as noites eram longas e frias. Mesmo na noite de Natal a mãe fizera a cafeteira de café com leite como sempre. Só que, naquela noite em que a família se reuniu mais uma vez para ouvir histórias antigas, o João não aparecia. Os pais estranharam e procuraram-no pela casa. Ajoelhado diante do presépio, o João agradecia ao Menino Jesus a ajuda que tinha recebido, ao mesmo tempo que colocava em frente da gruta que abrigava a Sagrada Família, um grande embrulho cheio de bolos que tinha trazido de casa da velhota nesse dia.

O Jantar

O anafado e felpudo gato amarelo espreguiça-se, deitado, aproveitando a nesga de sol que, ao meio-dia, pinta a soleira da porta onde o sapateiro trabalha. Passa o dia para cima e para baixo com ar empinado. Toda a rua lhe pertence e toda a gente se mete com ele: é o rei da rua da Paz.

Todos os dias o sapateiro traz um petisco de casa: ontem uma rodela de chouriço, hoje uma cabeça de peixe cozido. O gato sabe que visitando o beco da rua da Paz nunca sai de estômago vazio.

Um dia, apareceu um cliente muito exigente: queria o trabalho terminado para o próprio dia, nem que fosse à meia-noite. O sapateiro não podia recusar, o cliente era importante, pagava bem e a pronto. O dinheiro dava jeito e isso compensava a falta do jantar.

As horas passavam e, em casa, a mulher do sapateiro estava inquieta­ – o jantar arrefecia.

Era muito tarde e o sapateiro continuava o seu trabalho. Uma pasta em couro, tinha o fecho avariado que era preciso substituir. Havia que cozer e cozer. O frio e a fome não aligeiravam os dedos. Foi então que o sapateiro sentiu algo a empurrar a porta, que estava encostada. Assustou-se e perguntou: “-Quem está aí?” Nenhuma voz respondeu. Preparado para o que desse e viesse o sapateiro levantou-se. Já disposto a atirar o pesado banco de três pernas onde se sentava, caiu, desamparado, no chão, ao ver o gato amarelo que soltava um curto mio, enquanto ofertava um gordo ratinho de pêlo brilhante cinzento escuro, para o jantar.