quarta-feira, 29 de julho de 2009

Tenacidade

Um fio de luz atravessava o vidro partido da janela do camarim do velho teatro, batendo nos olhos de Luna. Esta, acordou atordoada e confusa. Colocou a patita direita sobre os olhos, para os proteger da claridade. Tentou reconhecer o local e recordar a razão pela qual se encontrava ali. Olhando à sua volta, sobressaltou-se com a visão do cavaleiro a escorregar pela tenaz e recordou-se de tudo. Subitamente, uma enorme dor de estômago fê-la esquecer, por momentos, as circunstâncias e as razões da sua presença naquele local. Certamente porque não comia nada há, pelo menos, três dias. Ocorreu-lhe, então, procurar nos camarins e pelo chão qualquer coisa que se pudesse trincar. Fartou-se de procurar por todo o lado e nada. Quando estava quase a desistir, viu brilhar qualquer coisa ao fundo do corredor. Era uma embalagem meia desfeita e aparentemente vazia, de bolachas de chocolate. Espreitou lá para dentro sem grande esperança. Porém, bem lá no fundo, descobriu bocadinhos de bolacha que exalavam um delicioso cheiro a chocolate com creme. Estava salva! Começou rapidamente a rasgar o plástico brilhante prateado da embalagem. Finalmente conseguiu e, encostando-se à parede, comeu aquilo que lhe pareceu o mais delicioso dos manjares.

Estava a comer o último pedacinho quando o barulho de uma porta a abrir a fez estremecer. Escondeu-se, assustada. Eram dois homens. Um deles era o tal que estava vestido de preto na peça e que caminhava com passos pesados e decididos para o local onde estava a tenaz. Fez uma cara de grande satisfação e deu uma volta pelos outros camarins, para ver se não havia mais nada esquecido. Voltando ao local inicial, soltou uma frase engraçada: “-Graças à minha tenacidade *…recuperei a tenaz!!!” Pegou nela com cuidado e, afastando-se a passos largos de onde a tinha encontrado, atravessou o palco e saiu da sala dirigindo-se ao carro, onde o aguardava uma senhora, pequena e simpática.

Espreitando por um buraco que conseguiu abrir, à pressa, no papel de que era feita a tenaz, enquanto o homem andava pelos outros camarins, Luna conseguiu ver que o carro conduzido pela simpática senhora se dirigia agora para longe da Rua da Paz, talvez para fora do perímetro usualmente frequentado pelos três ratinhos. O homem não escondia o seu contentamento por ter conseguido recuperar a tenaz “- Uma coisa que deu tanto trabalho a fazer!” “Assim, se voltar a ser precisa, já não há problema!” Luna conseguia ver a paisagem pela janela do carro mas aos solavancos. “Só espero que não me encontrem aqui! Senão, estou perdida! São capazes de me mandar desta para melhor! Ou antes, para pior!”

Luna estava muito longe de se encontrar com os seus irmãos mas, pelo menos, estava viva!”

À porta do campanário, Merlin, Bé e Tatá tinham conseguido roer o último pedacinho de madeira que os levaria à liberdade. Preparavam-se para passar pelo buraco, agora muito maior, quando sentiram passos pesados pararem junto à porta. Ouviram meter a chave e dar duas, três, quatro voltas. Era o sineiro que, finalmente, abria a pesada porta de madeira. “Afinal tanto trabalho para nada!” – disse a Bé. “ E eu que tive de roer esta madeira toda podre e mal cheirosa!” –rematou Merlin. “Calem-se e escondam-se!” –avisou a Tatá. “Não tarda nada, descobrem-nos e depois é que nunca mais nos safamos!” Os três ratinhos encolheram-se o mais que puderam atrás do primeiro degrau. O sineiro entrou, limpou os pés e fechou a porta com grande estrondo. Olhando para o fundo da porta, viu que agora entrava um feixe de luz. Fez uma careta e praguejou: “- Malditos ratos! Já não bastava o caruncho! Agora até eles roem a porta! Amanhã, já lhes trato da saúde! É só ir à drogaria a acabo-lhes com a raça!”.Os três ratinhos tremeram só de imaginar o destino que o sineiro lhes prometia. Os três engoliram em seco. Então o homem começou a subir os degraus lentamente e, a cada passo, ouvia-se ranger a madeira. Suspiraram de alívio quando sentiram que ele tinha chegado ao último degrau. Com muita cautela, começaram a sair pelo buraco na porta, um a um, em fila. Primeiro a Bé, depois a Tatá e a seguir o Merlin. Estavam finalmente na rua.

* (constância, perseverança, persistência)

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