terça-feira, 17 de novembro de 2009

O Lápis Mágico

Na escola, o Pedro era conhecido por ter jeito para desenho. Muitas vezes a professora Alzira deixava a sala para ir mostrar às colegas das salas vizinhas os desenhos do Pedro. Esse dom para desenhar era para ele próprio um mistério,já que, quando pequeno, não se atrevia a pegar num lápis para desenhar o que quer que fosse. Isto aconteceu durante alguns anos até ao dia em que encontrou um lápis vermelho, seistavado e com letras douradas. O lápis parecia ter aparecido do nada pois, antes de o encontrar no chão do seu quarto, o Pedro não tinha dado pela sua presença. Mais misterioso ainda, era o facto do lápis ter desaparecido imediatamente a seguir a tê-lo encontrado. Foi um episódio que lhe fez perder alguns minutos de atenção mas logo esqueceu, uma vez que não era o tipo de objecto que lhe interessasse muito.

Um dia, porém, ao dar a volta à cama para pegar uns livros que haviam escorregado no intervalo que aquela fazia com a parede, encontrou-o novamente e isso recordou-lhe as circunstâncias do seu aparecimento repentino, da primeira vez. Resolveu pegar nele. Era, na verdade, um bonito lápis. Enquanto olhava para ele, o avô Carlos que passava diante da porta semi-cerrada do quarto do Pedro, ao ver que o neto admirava o lápis vermelho, aproximou-se e sussurrou:

“É bonito, não é?”

Pedro olhou para a porta, surpreendido, pois não contava com a presença do avô.

“É sim, avô!”

“Tiveste muita sorte em “ele” ter ido ter contigo!”

“Como assim, avô?”

“Esse lápis não vai ter com qualquer um. É mágico!”

“Mágico?”

“Sim! Já me veio parar às mãos uma vez, quando era mais ou menos da tua idade!”

E, enquanto falava, o avô ia entrando no quarto do Pedro, sentando-se ao lado do neto, na beira da cama.

“E ele apareceu assim, sem mais nem menos?” - admirou-se o Pedro.

“Sem mais nem menos!”

“Isso é muito estranho! A mim aconteceu-me o mesmo há dias atrás!”

“Pois, parece que é uma característica deste lápis! Quando o encontrei também me pareceu surgido do nada!”

“Mas, avô, o que aconteceu a seguir?”

“A seguir peguei nele e, sem saber como, senti-me impelido a procurar uma folha de papel para ver como era o seu traço!”

“E como era?”

“Era cinzento, brilhante, fino e grosso, leve e carregado!”

“Tudo isso, avô? Como é possível?”

“Foi o acontecimento mais marcante da minha infância! De repente o lápis parecia ter ganhado vida, traçando linhas rectas, curvas fazendo surgir formas extraordinárias de elefantes, árvores fantásticas, flores nunca vistas, edifícios altos, com muitas janelas e balcões, pássaros riscando o céu, nuvens encaracoladas, pessoas caminhando de um lado para o outro, uns a trabalhar, outros a passear, automóveis, aviões, barcos num mar calmo com o pôr-do-sol no horizonte…”

“Avô, achas que pode acontecer o mesmo comigo?”

“Sim, filho, não é difícil! Basta pegares nele, numa folha de papel e deixares-te levar pela sua vontade! É até provável que vejas antecipadamente, no papel as formas que ele fará realçar! Ele irá contar-te histórias que nunca imaginaste poderem existir!”

“Obrigada, avô! Hoje mesmo vou descobrir os segredos do lápis mágico!”

sábado, 31 de outubro de 2009

Halloween

Naquela noite a Lua brilhava como uma grande bola de cetim branco e frio sobre as casas da rua da Paz. Nos telhados, a sombras quadriculavam-se e as aves nocturnas soltavam pios de arrepiar e pôr os cabelos em pé. No ar, sentia-se uma brisa quente fora de época, uma vez que era o fim do mês de Outubro. Atrás das árvores um barulho de arrastar de pés parecia varrer todas as folhas caídas naquele Outono, ao longo do rio. De repente, um som de algo pesado atirado à água, quebrava o quase silêncio da noite.

******

Ao fim da tarde, Ana regressava a casa, depois de um dia de árduo trabalho no cabeleireiro. As costas, os pés, todo o corpo lhe doía, até porque andava em formação pós laboral e o simples facto de não se poder mexer muito na cadeira da sala de aula não contribuía para melhorar a tensão muscular que acumulara ao longo do dia. Rui, o seu colega de trabalho, precisava de tratar de um assunto de família e saíra mais cedo do serviço. O trabalho pesado sobrara para ela. Acabou por ter de varrer o salão, limpar os espelhos, dobrar as toalhas, ordenar as latas de laca e os frascos de produtos para o cabelo, limpar as escovas, tudo isto sozinha. Gostava do trabalho mas nada parecia fácil. Umas vezes as clientes não ficavam satisfeitas com a secagem do cabelo, outras com a maneira como lavava as cabeças, etc., etc.

Naquele dia resolvera atalhar caminho pelo rio quando, ao passar numa curva do caminho, junto ao castanheiro velho, esbarrou com o seu colega Rui que, com o rosto branco que nem cal da parede, a cumprimentou como se não a tivesse visto ainda nesse dia.

“Olá! Boa noite! Estás boa?”

“Olá! Então por aqui? Não ias para casa da tua avó tratar de um assunto de família?”

“Sssim! Já está tratado!”

“Então o que fazes aqui?”

“Ora, vim apanhar ar!”

“Aqui, sozinho?”

“Então, tu também aqui estás!”

“Sim, mas eu vou para casa!”

“E eu também! Adeus! Até amanhã!”

“Até amanhã, Rui!” Ora esta – pensava a Ana – ele há com cada uma! G’anda lata! O que é que ele andaria aqui a fazer?

Sem pensar mais nisso, Ana continuou o seu caminho, não sem olhar para trás por várias vezes, não fosse o diabo tecê-las.

No dia seguinte foi a primeira a chegar, como era costume. Passada uma hora chegou o Rui com cara de quem não tinha pregado olho toda a noite.

“Isso é que foi farra!” disse a D. Catarina, proprietária do estabelecimento.

“Eh! Eh!”- sorriu Rui à laia de resposta.

Ana franziu o sobrolho. Ele não tinha estado em farra nenhuma, porque é que não dizia a verdade?

Rui olhou para ela, como se implorasse cumplicidade e Ana calou-se, para não deixar ficar mal o amigo.

Mais tarde, ao fim da manhã, chegava o jornal local do dia que, na primeira página, apresentava em letras garrafais “ Corpo de septuagenária resgatado do rio já sem vida, junto à curva do castanheiro!”.

Ana arrepiou-se. Lembrou-se então que o local onde acharam o corpo, era precisamente onde se havia cruzado abruptamente com o Rui, na noite anterior. Olhou para o colega mas ele fugiu com o olhar. Ana ficou aflita. O que havia de fazer? Falar com ele? E se ele ficasse furioso e também ela, frágil e leve, pudesse ser atirada ao rio com toda a facilidade? O gesto de secar o cabelo a uma cliente parara para dar lugar à visualização da cena da sua execução e afundamento. A cliente protestou:

“Ai, a minha orelha!”

“Desculpe, D. Alzira! Foi sem querer!”

“Há que ter cuidado!”

“Sim D. Alzira, peço desculpa mais uma vez! Estava distraída!”

“ É sempre assim…” E a cliente lá ia desenrolando o rol da sua pouca sorte. Daquela vez a orelha, no outro dia ficara com uma mancha de tinta na blusa branca. Já para não falar na cor do cabelo, que na semana passada tinha ficado verde, depois de uma descoloração.

Ana perdera-se nos seus pensamentos enquanto ia olhando para o Rui de soslaio. Este parecia cada vez mais incomodado à medida que Ana olhava para ele. Até que, à hora de almoço, como era costume, saíram juntos. Pelo caminho, Ana resolveu ir directa ao assunto:

“O que estavas a fazer ontem naquele sítio, aquela hora?”

“E tu? Também lá estavas e eu não perguntei nada!”

“Não desvies a conversa! Diz lá o que estavas a fazer! Não viste nada estranho? Foi no local onde encontraram a velhota!”

“ Não sei, não vi nada…até porque…”

“ Até porque…continua!”

“Até porque eu estava, ou melhor tinha acabado de estar com aquela pessoa que tu sabes! Acabámos tudo!”

“Ahn?”

“Sim, tínhamos acabado tudo quando tu apareceste!”

“Então o assunto de família era esse?”

“Sim!”

“E a tua avó?”

“Sei lá, deve estar na aldeia! Há uma semana que não a vejo!”

“Oh Rui, dá cá um xi e um beijinho! Se soubesses o susto que tu me pregaste!”

“Eu? Porquê?”

“Isso agora não interessa! Vamos mas é almoçar depressa, que ainda temos de ir comprar umas coisas para festejar o Halloween!”

No fim da tarde, Ana resolvera voltar a casa pelo caminho da véspera. Estava um pouco ventoso mas não tão quente. A certa altura, quando ia a passar na curva onde encontrara o Rui no dia anterior, ouviu um ruído estranho, como se alguém arrastasse os pés. Virou-se de repente e soltou um grito de pavor…alguém muito pequeno mas pesado olhava para ela com ar de quem queria agarrá-la. Ana, impulsionada por uma força que desconhecia, virou-se de repente e desatou a correr o mais depressa que conseguiu. Quando chegou a casa, sentia o coração na garganta. A mãe perguntou-lhe o que tinha mas ela nem conseguia falar.

“Sabes o que aconteceu ontem, ao fim da tarde, lá para os lados do rio, na curva do castanheiro?”

“Sim, mãe, encontraram uma velhota!”

“Tu também tens a mania de vir por aquele caminho!”

“Deixe lá mãe, nunca mais venho por lá!”

segunda-feira, 12 de outubro de 2009

O barco rasgado

No caminho para casa o Sr. Justino encontrara uma folha de papel rasgada e manchada com pingos que pareciam de água. Por curiosidade, apanhou-a do chão e mirou-a de um lado e doutro na esperança de encontrar alguma palavra escrita. Não havia nada escrito. Apenas num dos lados, um desenho que parecia ter sido feito por uma criança, representava uma parte de um barco rodeado de ondas, talvez um barco de pesca. Sobrevoando o barco, algumas das que deviam pertencer a um conjunto de gaivotas, dava a sensação de que o barco estaria já cheio de peixe. Ao longe, na linha do horizonte, meio sol alaranjado espalhava os seus raios amarelos iluminando a paisagem marinha. A folha tinha sido rasgada, mas deixava adivinhar um bonito desenho, rico em pormenores e cheio de esperança. Esperança transmitida pelo raiar do sol, pela promessa de boa pescaria, pela alegria da chegada ao lar com os cabazes cheios. Quem teria rasgado a folha e porquê? Onde estaria a outra metade? Quem seria o autor do desenho?

Era fim da tarde, meteu a chave à porta e esperou ver o sorriso da esposa, a D. Luizinha. Era costume ela dirigir-se ao vestíbulo e abraçá-lo, quando era a primeira a chegar do emprego. Mas não foi o que aconteceu. Em vez disso, encontrou-a a chorar no sofá da sala.

“O que é isso, querida?”

“Não sabes o que aconteceu?”

“Diz-me tu!”

“Uma grande desgraça!”

“O teu genro, o pai do teu neto! Minha querida filha…que desgraça tão grande, meu Deus!”

“O que foi? Até estou a ficar com falta de ar!”

“Deram-nos a notícia há pouco! O barco de pesca onde ia o teu genro, afundou-se ao largo de Peniche!”

“E o Luís, já sabe?”

“Já, coitadinho! Vinha da escola tão contente com um desenho para dar ao pai quando ele chegasse e soube logo que ouviu o choro da mãe, já perto de casa!”

O sr. Justino tirou então, do bolso do casaco, a folha rasgada que encontrara no chão e o desenho começou a ficar inundado de pingos de água a juntar-se aos que lá deixara o neto que tanto amava.

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Baunilha e Chocolate

“Hoje é um dia triste!” disse a Teresinha sem olhar para onde ia. Ao seu lado, o cão castanho, Chocolate e a cadela creme, Baunilha, caminhavam a par sem parecer ouvir o que ela dizia.

“Dia triste, dia triste…” repetia a Teresinha.

Chocolate virou a cabeça para Teresinha e soltou um breve som, parecido com um latido de solidariedade.

“Nunca mais chegamos a casa! Estou farta desta chuva e estou de mau humor!”

Chocolate latiu outra vez, acompanhado pela Baunilha.

“Estou farta de dizer que em dias de chuva não se devia sair de casa! Ficávamos a dormir até à próxima Primavera e pronto! Hibernávamos!”

Alheios às lamentações de Teresinha, Chocolate e Baunilha largaram a correr até ao fim da rua da Paz, isto é, até ao Beco, onde já não havia saída. Lá, o sapateiro e o gato amarelo continuavam no seu lugar, desta vez sem sol a pintar a soleira da porta. Quando o Chocolate e a Baunilha chegaram o sapateiro exclamou:

“Olha que dois! Estão inseparáveis! Até parece que sempre estiveram juntos! Ainda me lembro do dia em que a Baunilha chegou aqui, toda sacudida a dar à cauda, a meter o nariz em tudo, a cheirar e a querer brincar! O Chocolate estava a fingir que dormia, com um olho aberto e outro fechado. Viu-a e fez de conta que não se passava nada. Mas eu bem vi quando ela se afastou. Ele levantou a cabeça a ver para onde ela ia. No dia seguinte, ela apareceu outra vez, novamente a cheirar e a espreitar. Olhou para o Chocolate, disfarçadamente, e começou a andar à volta dele, como que a pedir atenção. Então, ele levantou-se e começou a cheirá-la. Desde esse dia nunca mais se separaram!”

Quando o sapateiro acabou a história já Teresinha estava sentada há muito, num banco, com a cabeça entre as mãos à espera que ele se calasse.

“Essa história até parecia bonita, se não tivesse um final triste!”

“Ora essa! Até agora está a correr muito bem!”

“Pois, mas eles não vão ficar juntos para sempre!”

“Ai não? E como é que tu sabes?”

“Ouvi dizer que o Chocolate vai ser levado para o canil porque não tem dono e lá talvez até o matem!”

“Não!”

“Sim!”

“Não pode ser! O Chocolate e a Baunilha são inseparáveis! Temos de fazer alguma coisa!”

“Isso era se o Chocolate fosse adoptado pelos donos da Baunilha ou por alguém aqui da rua!”

“Se for preciso eu trato disso! Vamos arranjar um dono para o Chocolate ou ficarei eu com ele!”

“Fixe! Talvez o dia termine melhor do que começou!” rejubilou a Teresinha batendo as palmas.

Parecendo perceber, Baunilha e Chocolate começaram outra vez a brincar e a correr mas em sentido contrário como se no outro extremo da rua o dia estivesse radioso de sol.

domingo, 4 de outubro de 2009

Dia de Cerejas

“Hoje é dia de cerejas!” disse a Julinha, compondo a saia rodada que tinha herdado da avó.

A tia Inha, afadigada com as compras pareceu-lhe ter ouvido algo que não fazia sentido na conversa. “ É dia de quê?”

“De cerejas!”

“E o que é que isso quer dizer?”

“Quer dizer que andamos a falar de tantas coisas, umas atrás das outras e não conseguimos parar de falar!”

“E o que é que isso tem a ver com as cerejas?”

“Ora, não costumam dizer que as conversas são como as cerejas?”

“Lá isso…”

“Então! Ainda não nos fixámos num único assunto importante!”

“E o que é que consideras importante?”

“Importante é, por exemplo, falar da paz mundial, da fome no mundo, das armas nucleares, das catástrofes da natureza e a possível implicação do Homem no seu desencadeamento…”

“Então e falar do senhor Armando que está desempregado há um mês, da filha da Julieta cabeleireira que tem um curso de enfermeira e não consegue emprego, do senhor Manuel que teve de fechar o minimercado porque as grandes superfícies comerciais lhe tiraram a freguesia toda, não são assuntos importantes?”

“…”

“Pois!”

“Vamos lá, então, comprar cerejas e comê-las todas! Pode ser que, assim, os problemas locais e mundiais desapareçam de uma vez!”

sexta-feira, 28 de agosto de 2009

Sonhos e aventuras

Era o final de uma magnífica manhã de sol. Tatá e Merlin, debaixo do alpendre da casa do sapateiro, abrigavam-se na sombra, para enfim retomarem as buscas por Luna. Enquanto se concentravam neste pensamento, a Bé apareceu, muito alterada e falando em voz alta:

“- Merlin, Tatá! Parece que a Luna está a chegar!”

Os dois ratinhos entreolharam-se e deram um salto para o lado de fora correndo a tapar a boca da Bé que, compreensível mas precipitadamente, arriscava a vida diante do temível gato amarelo, que lavava as orelhas, com um olho aberto e outro fechado.

“- Não vês que nos colocas a todos em perigo?” – sussurrava Merlin.

“- A esta hora o pastelão do gato amarelo já nos topou! “ – reforçou a Tatá.

“ – Mmmas…a LLLuna…no carro…o rrrato Mickey…” – gaguejava a pobre da Bé.

“ – O quê? “ E o Merlin voltava-se para a Tatá, fazendo pequenos círculos, com o indicador junto à cabeça, querendo dizer que a sua irmã estava com um parafuso a menos.

“ – Deixa-a explicar-se!” – exclamou a Tatá com ponderação.

“- Fala Bé, o que é que viste?” – retomou a Tatá.

E a Bé lá contou o que tinha acabado de acontecer, começando, como era hábito, pela hora a que se tinha levantado de manhã, o que exasperava sempre os seus companheiros. À medida que a ratinha contava o sucedido e eles começavam a compreender, os seus narizes tremiam de contentamento e nem interrompiam para não atrapalhar a companheira ainda mais. Quando o relato chegou ao fim, Merlin pegou nas mãos da Tatá e da Bé e desatou a correr a toda a velocidade dizendo:

“ – Depressa, não podemos atrasar-nos! Temos de ser os primeiros a chegar ao cimo do campanário, como lhe prometi!”

E, assim, Merlin puxava as duas ratinhas e elas lá iam como podiam, tropeçando aqui e ali. Uma vez chegados ao campanário da igreja, depararam-se com um grupo de crianças que andavam a brincar no parque, segurando, no meio de risos e saltos, balões coloridos esticando os frágeis fios a que estavam presos, num ímpeto de voarem acima das árvores, cujas sombras se projectavam em círculo nos passeios em redor. Era quase meio dia, a hora combinada. Merlin ia à frente, subindo as escadas rapidamente, enquanto as duas ratinhas tentavam segui-lo. Começavam a bater as doze badaladas. Assim que chegaram lá acima e enquanto tapavam os ouvidos para não furarem os tímpanos, os ratinhos olhavam ansiosamente para os últimos degraus da escadaria de madeira, temendo que ainda não fosse desta vez o reencontro com Luna. Finalmente, começaram a ouvir uma respiração ofegante, entrecortada por ais e suspiros e, mesmo ao bater da décima segunda badalada, viram aparecer a cabeça cinzenta clara da Luna que, ao vê-los, desatou a chorar descontroladamente, não acreditando ainda ser verdade, o encontro há muito tempo esperado.

Os quatro ratinhos desataram aos saltos, dando as mãos em círculo e fazendo uma roda debaixo do sino, que parara de tocar, mas cujo metal ainda vibrava, tal como as aventuras vividas permaneciam, ainda que tenuemente, na memória. Bé, Tatá e Merlin não paravam de fazer perguntas sobre como tinha ido parar à Disneylândia, a viagem, o regresso e a tudo Luna ia respondendo com entusiasmo. No final, começaram a pensar como seria a vida deles dali para a frente e se alguma vez voltariam a viver aventuras tão emocionantes como aquelas por que já tinham passado. Com os queixos apoiados nas mãozinhas e os cotovelos unidos em cima das janelas da torre da igreja, diante das quais se elevavam folhas amarelecidas pelo sol naquele quase final de verão, começaram a olhar as crianças que, lá em baixo, continuavam a brincar animadamente, mal conseguindo segurar os balões que o vento encorajava a soltarem-se. De repente, por entre a revoada de folhas que subiam e planavam no meio dos ramos das árvores, dois balões soltaram-se, provocando uma série de exclamações de desapontamento que vinham de baixo, ao mesmo tempo que as cabecitas das crianças se viravam para cima e os deditos apontavam para o céu. Nesse momento Luna exclamou:

“ – Tive uma ideia!”

Merlin olhou perplexo para Luna e depois para Tatá e Bé, fazendo uma cara de quem pensava “vêm aí sarilhos”.

Sem perder tempo, Luna esticou o braço direito e apanhou o primeiro balão. O impulso fê-la desequilibrar-se mas Merlin e Tatá, que estavam mais perto, pegaram também no fio do balão para a ajudar. Como não conseguiu chegar tão perto, a Bé esticou, também, o braço, conseguindo agarrar o outro balão. Então Luna revelou aos outros a sua ideia.

“- Vamos fazer uma viagem de balão!”

“ – Sim!” - respondia o Merlin.

“ – Não”! – gemia a Tatá.

“ –Agora não podemos voltar atrás! Estamos em desequilíbrio e se o soltarmos caímos lá em baixo! Segurem-se bem! Bé segura-te tu também ao teu balão! Tenho esperança de que, mais tarde ou mais cedo voltaremos a encontrar-nos!”

Deixando-se levar, os quatro ratinhos levantaram voo, arrastados pelas correntes do vento quente do sul.

No seu balão, Bé afastava-se cada vez mais,dizendo adeus com a pequena mãozinha, prometendo juntar-se aos outros na próxima oportunidade.

Então, Merlin, maravilhado, Tatá, de olhos fechados e Luna, com eles bem abertos, começaram uma viagem pelos ares, iniciando uma nova aventura, que todos ansiavam que fosse plena de conhecimento, emoção e espírito de camaradagem.

(Nota: O balão de Luna , Merlin e Tatá rumou à serra da Lousã, enquanto que o de Bé se afastou um pouco, em direcção ao Senhor da Serra.)

segunda-feira, 24 de agosto de 2009

Novas pistas de Luna?

Quando ia a descer a Rua da Paz, a Bé ouviu alguém falar em voz baixa e isso despertou-lhe a atenção. Parou, escondendo-se atrás de uma árvore e colocou a mão atrás do ouvido para tentar ouvir melhor.

“- Ouve lá, eu moro aqui há algum tempo e sei bem como as coisas se passam! Há aqui boa gente mas é sempre preciso dar um incentivosinho!”

“- O que queres dizer com isso?”

“-Então, eu costumo pedir comida nesta esquina e as pessoas já se habituaram a mim! Já me adoptaram, como agora se diz!”

“- E, como conseguiste?”

“ - Ora, comecei por miar com um ar suplicante, de quem já não come há semanas! Por acaso nem era grande mentira, pois eu, quando aqui cheguei, estava magro que nem um carapau seco!”

“ - Pois e a minha situação é muito grave, como sabes! Fui posta na rua há pouco tempo, em vias de dar à luz! Os meus quatro gatinhos já nasceram e não tenho possibilidades de os sustentar sozinha! Aquela família com quem vivia começou logo a torcer o nariz quando me viu de barriga grande e aproveitaram a época de férias como desculpa para me porem na rua!”

“ – Isso é muito feio!”

“ – Pior, é catastrófico!”

“ – Então, estás a dar-me razão! Se aparecermos todos em conjunto vão pensar que somos uma família desalojada e isso enternece, pelo menos algumas pessoas!”

“ – Não sei, tenho medo e os gatinhos também!”

“ – Confia em mim! Fazemos assim: eu vou à frente e peço comida pois já me conhecem! Logo a seguir apareces tu com os gatinhos atrás! Vais ver como vai dar resultado!”

A Bé estava atordoada. “Como este mundo é cruel” – pensava ela. Para seu grande desgosto a Rua da Paz estava cheia de gatos e gatinhos. Nunca vira uma tão grande população de felinos no Verão. Até parecia que havia uma praga. No entanto, a espécie humana estava a manifestar cada vez menos escrúpulos. Bem sabia que os gatos adoram fazer sofrer os ratos mas o facto dos seres humanos os deitarem literalmente fora, também estava a contribuir para o extermínio dos ratos e isso preocupava-a mais do que tudo o que ouvira. É claro que isso não desculpava os humanos pela sua crueldade! A Bé foi-se afastando, a pensar nisto, quando uma travagem forçada a fez virar a cabeça na direcção oposta – era um carro grande e cinzento, com quatro pessoas e…um rato. “ Mas…é o rato Mickey!” Como está velhinho, pensou a Bé. Velhinho mas bem conservado. Ninguém lhe dá a idade que ele tem, 81 anos. * “É uma celebridade que há-de atravessar várias gerações, um verdadeiro imortal!” – pensou a Bé em voz alta. Mas isto faz-me lembrar qualquer coisa. Claro! O postal da Luna! Será que aqueles também estiveram na Disneylândia? Ou, melhor, será que eles são os humanos que levaram a Luna sem saberem? Se assim for a Luna está com eles…naquele carro!

“- Merlin, Tatá! Parece que a Luna está a chegar!”

· http://www.rs4e.com/portal/sabias_que_mikey

sexta-feira, 21 de agosto de 2009

O regresso

Enquanto recebia o envelope das mãozinhas trémulas da Bé, Merlin tentava raciocinar sobre a razão de Luna ter desaparecido e, de repente, mandar notícias pelo correio.

“- Não percebo!” – comentava Merlin - “A Luna falta ao nosso encontro, sobe a um arbusto e agora escreve?”

“- Vê se lês a carta e alto que é para nós ouvirmos bem!” – retorquiu a Bé.

Quando Merlin retirou o que estava dentro do envelope, viu que tinha um carimbo de Paris. Depois, verificou que era um postal que representava o castelo da Bela Adormecida.

“- Mas isto é na Disneylândia! Meninas, ela está na Disneylandia em Paris!!!”

“ - Oh! Que sorte!” – comentaram a Bé e a Tatá ao mesmo tempo.

“ - Sim, diz aqui que entrou por acidente no carro de um casal, esse casal resolveu fazer uma viagem de férias com os filhos, escolheram a Disney como destino e ela acabou por ser levada, sem eles saberem, num dos sacos da bagagem. Diz também que, apesar de ter sido um acaso, ela sempre quis visitar esse local e, por isso, não está nada arrependida!” – contou Merlin.

“- A ingrata! E nós aqui cheios de preocupação!” – respondeu de imediato a Bé.

“ - Sim, e se não a tivéssemos procurado, nem saberíamos se estava viva ou morta! O gato amarelo quase lhe ia deitando a unha!” – acrescentou a Tatá.

“ - Diz também, que em breve estará de volta pois a família que a levou, não pode lá ficar muito tempo! Só três dias!” – continuou Merlin.

“ - Bem, o que interessa é que está bem!” – disse a Tatá.

“ - E ainda teve a preocupação de mandar notícias!” – comentou a Bé.

Enquanto isso, Luna já vinha a caminho, pois o tempo que o postal demorou a chegar acabou por apanhar um fim-de-semana, fazendo com que a chegada de Luna fosse próxima da recepção do correio, na rua da Paz.

A viagem foi um tanto atribulada, pois Luna enjoou muitíssimo e não vinha muito bem acomodada entre um saco de roupa e outro de caramelos.

A certa altura, ouviu dizer que havia um acidente na estrada e que o trânsito tinha de ser desviado. Nesta altura do ano, havia muitas famílias de portugueses a trabalhar no estrangeiro, que regressavam à sua terra natal, para umas merecidas e retemperadoras férias. Só que a pressa de chegar era tão grande, que, por vezes, havia quem fizesse poucas pausas para descanso, o que provocava falta de atenção, originando alguns acidentes, alguns dos quais fatais.

“ - Bem, já podemos dormir descansados!” – desabafava Merlin, para quem o desaparecimento de Luna, constituíra um quebra-cabeças.

“ - Por estes dias ela deve estar de volta! Só espero que ela não se esqueça do local do encontro!” - continuou.

" - Onde era?” – perguntou a Tatá.

“ - Onde havia de ser? No campanário, claro!” – respondeu a Bé.

“ - Sim, no campanário, ao bater das doze badaladas!” – esclareceu Merlin.

domingo, 9 de agosto de 2009

A viagem

Durante o curto trajecto desde o velho teatro até ao destino que Luna desconhecia, o casal foi falando e fazendo planos para aquilo que parecia ser uma viagem. Falavam sobre finalmente estarem de férias e de tudo o que precisavam para que elas corressem bem. Finalmente, chegaram a uma casa cercada por um muro, com dois portões, um maior para passarem carros e outro menor que ficava em frente da porta principal, ao fundo de um pequeno caminho empedrado, ladeado de pequenas sebes amarelecidas, como se tivessem sido queimadas pelo Sol.

Assim que o carro parou, do outro lado da rua, Luna enfiou-se num dos sacos de compras que, no chão, um pouco abaixo do cavaleiro de cartão, aguardavam que os transportassem para a cozinha. Finalmente, alguém pegou nos sacos das compras e começou a tevá-los para dentro da casa. Ao passar pelo portão pequeno, Luna ficou aterrorizada com a visão de um azulejo que, aplicado no muro branco, anunciava a presença de um cão, recomendando cuidado. Depressa esqueceu o medo do cão pois, o cheiro intenso a queijo vindo do embrulho onde encostara a cabeça, deu-lhe uma enorme sensação de fome, fazendo-a quase desmaiar de fraqueza.

No quintal do senhor Avelino, Merlin, Bé e Tatá tentavam chegar a uma conclusão sobre as medidas que deveriam tomar para conseguirem saber o paradeiro de Luna. Acabaram por subir a trepadeira à procura de pistas que os pudessem esclarecer sobre o seu desaparecimento. Assim, um após outro, encabeçados pela Bé, à qual se seguiu a Tatá e, finalmente, o Merlin, conseguiram, com alguma dificuldade, chegar ao ramo que ficava mesmo encostado à janela do edifício. Uma vez lá, tentaram espreitar pelos vidros mas não se via nada por causa do pó acumulado ao longo de muitos anos. Então, a Tatá começou a passar a patinha pelo vidro, fazendo pequenos círculos, até que conseguiu alguma transparência, a necessária para ver um grupo de senhoras a limparem o chão ao longo dos corredores entre as filas de cadeiras. Ficou pasmada com a quantidade de lixo que as pessoas atiravam para o chão, certamente durante as sessões de cinema. Papéis de rebuçados, de chicletes, embalagens vazias de bolachas, enfim, uma autêntica lixeira. Enquanto espreitava, ia soltando "ais" e "Ah’s" o que deixava os outros em pulgas pois não estavam a ver nada e não sabiam a razão de tal espanto. Empurravam-se um ao outro para verem o que levava a Tatá a ficar tão escandalizada. Finalmente, as cabeças ora de Merlin, ora da Bé, alternavam na direcção da pequena clareira transparente, criada pela Tatá ao limpar o vidro. Também eles soltaram exclamações de espanto e tristeza pela pouca civilidade demonstrada pelos cidadãos que usufruíam daquela sala, onde tanto podiam ver interessantes filmes, como pequenos espectáculos, muitos dos quais apresentados pelas escolas dos diversos ciclos e onde, tanto a comunidade educativa local, como alguns convidados vindos de locais mais afastados da Rua da Paz, apreciavam o trabalho desenvolvido ao longo do ano lectivo.

Sem querer, tal como havia acontecido a Luna, o vidro deslocou-se para a frente e, por pouco, os três não iam parar lá em baixo. Merlin ficou com a testa cheia de gotas de suor e as pernas a tremer. Entrar assim, no palco do teatro, como que caindo num precipício, não era o que mais lhe apetecia nesse momento. Estavam a discutir sobre a melhor maneira de descer dali, quando uma das senhoras, olhando para onde lhe parecia vir um som de qualquer coisa a chiar, deu um enorme grito, apontando para a janela. Ao mesmo tempo, as colegas a tentavam acalmá-la, enquanto ela balbuciava algumas palavras que elas mal compreendiam. Finalmente conseguiu falar: “ – Rrrr…rrrr…ratos!!!” “Onde?” – perguntou a mais velha. “Ali, na janela, por cima do palco!” Os ratinhos ficaram sem pinga de sangue. Assim, de repente, não lhes ocorreu nada e como não tinham coragem de saltar dali, ainda por cima com um grupo de pessoas todas aos gritos a olharem para eles, resolveram voltar para trás, pelo mesmo caminho. Sem saber como, rapidamente puxaram a vidraça, conseguindo passar um a um, voltando para os ramos da bela trepadeira. Já no exterior, deram um suspiro de alívio e acabaram por se decepcionarem consigo próprios por não terem conseguido chegar ao palco ou à sala e tentarem encontrar algum vestígio ou sinal da presença de Luna, uma vez que as marcas deixadas no tronco da trepadeira davam a entender que ela teria subido por ali. Acabrunhados, regressaram a casa, combinando para o dia seguinte, uma nova escalada até à janela ou, então, tentarem a entrada por um caminho, onde não corressem o risco de serem descobertos por alguém.

No dia seguinte, Merlin foi acordado com a Bé e a Tatá aos berros, falando as duas atrapalhadamente e ao mesmo tempo. Merlin não entendia nada e tanto mais que passara a noite em claro a pensar no misterioso desaparecimento de Luna. Quando finalmente tinha conseguido pregar olho, é que aquelas duas tinham de aparecer de rompante e numa enorme algaraviada de onde pareciam emergir as palavras “postal”, “viagem” e “castelo”. Merlin não estava a entender e mandou-as calar. Elas calaram-se e a Bé, a tremer, esticou o bracinho para entregar um envelope a Merlin. Cheio de curiosidade, pegou no envelope e os seus olhos nem queriam acreditar no que estavam a ver. Era um postal de Luna, que escrevia do local onde estava e onde explicava resumidamente como tinha ido ali parar.

quinta-feira, 30 de julho de 2009

Angústia

Quando Merlin chegou cá fora, pegou na mão da Tatá e perguntou à Bé: “Estás bem?” “Sim!”- respondeu ela. “Mas foi cá um destes sustos!” “E agora?” – perguntou Merlin. “Para onde vamos?” “Vamos procurar a Luna!”- respondeu a Bé. “Vocês os dois vão por aquela rua e eu vou por esta!” “Não!” – retorquiu Merlin. “Não podemos separar-nos!” ” Nem penses!” –respondeu a Bé “Se não nos separarmos temos menos hipóteses de encontrar a Luna! E tu bem sabes como ela não tem sentido de orientação!” “Sim, se a Luna quiser ir para a esquerda o melhor é virar à direita!” - observou Merlin. “Bem, isso agora não interessa!” – interrompeu a Tatá. “Vamos mas é traçar um plano! Comecemos por fazer um mapa do local! Aqui estamos nós!” – e a Tatá fazia uma cruz com um pauzinho de fósforo queimado num pedaço de papel que apareceu naquele momento arrastado pela deslocação de ar provocada pela passagem de um automóvel. Era um carro conduzido por uma senhora simpática acompanhada por um homem grande e de ar feliz e em cujo banco traseiro, repousava um cavaleiro de papelão montado numa tenaz, de papel.

“Então, prestem atenção!” – reclamava a Tatá. “Aqui é a torre da igreja, onde nós estamos! Aqui ao lado é o quintal do senhor Avelino onde está o carvalho de onde vocês caíram em cima do gato amarelo! Vamos analisar o local novamente!” – acrescentou a Tatá, enrolando o pequeno mapa e metendo-o debaixo do braço. Encostados ao muro que separava o quintal do senhor Avelino da rua da igreja, os três ratinhos foram caminhando cautelosamente até ao portão da entrada. Uma vez lá, passaram por baixo, em direcção à velha árvore e começaram a olhar primeiro para cima, à procura do ramo onde estiveram pendurados e, depois, quando o avistaram, seguiram com o olhar o trajecto da queda, para calcularem o local provável da “aterragem”. “Foi aqui!” – exclamou a Tatá com toda a segurança. “Vêem estes pêlos amarelos e muitas marcas de patas de gato e patinhas pequenas? Tenho quase a certeza de que foi aqui que os dois caíram! Agora reparem nestas marcas, como se alguém tivesse rebolado!” Merlin e Bé estavam admirados com tão grande perspicácia. “Isto é matemático meus caros!” – justificava a Tatá. “Vamos ver onde acabam as marcas do rebolado! Reparem, acabam aqui, ao pé desta cameleira branca!” “Branca?” – admirou-se a Bé. “Sim, branca, porque dá flores brancas!” “Reparem, está tudo cheio de pétalas dessa cor. Como se alguém tivesse dado um abanão à arvore e ela tivesse deixado cair as pétalas das suas flores!” A Bé abanava a cabeça em sinal de assentimento enquanto analisava as marcas de unhas deixadas por alguém que parecia ter subido pela trepadeira, junto à parede do edifício ao lado. Era o velho teatro. Nele actuaram, noutros tempos, grandes nomes da cena nacional, mas que agora, recatada e pacatamente, viviam na Casa do Artista, sem o brilho e os aplausos dos tempos de glória. “Parece-me que a Luna pode ter subido por aqui!” – exclamou a Bé. “Mas porquê? Se eu, durante a queda lhe gritei: Espero por tiiiiiii…no campanááááário…” “Isso não sei! Mas algo me diz que a Luna foi atraída por uma força estranha, talvez vinda daquela janela!” – garantiu a Bé. “Ela não teria feito esta perigosa escalada sem uma boa razão!” – acrescentou. “ Ou sem um boa dose de louco entusiasmo, como é seu costume!” – defendeu Merlin. “Devemos subir também a trepadeira para tentar encontrar Luna ou devemos ir outra vez para o campanário e esperar que ela vá lá ter?”

Desta vez, os três ratinhos tinham sérias dúvidas sobre o caminho a tomar e se voltariam a encontrar-se com Luna. Sentiam uma angustiante dúvida que, acreditavam, tão cedo não iam conseguir resolver!...

quarta-feira, 29 de julho de 2009

Tenacidade

Um fio de luz atravessava o vidro partido da janela do camarim do velho teatro, batendo nos olhos de Luna. Esta, acordou atordoada e confusa. Colocou a patita direita sobre os olhos, para os proteger da claridade. Tentou reconhecer o local e recordar a razão pela qual se encontrava ali. Olhando à sua volta, sobressaltou-se com a visão do cavaleiro a escorregar pela tenaz e recordou-se de tudo. Subitamente, uma enorme dor de estômago fê-la esquecer, por momentos, as circunstâncias e as razões da sua presença naquele local. Certamente porque não comia nada há, pelo menos, três dias. Ocorreu-lhe, então, procurar nos camarins e pelo chão qualquer coisa que se pudesse trincar. Fartou-se de procurar por todo o lado e nada. Quando estava quase a desistir, viu brilhar qualquer coisa ao fundo do corredor. Era uma embalagem meia desfeita e aparentemente vazia, de bolachas de chocolate. Espreitou lá para dentro sem grande esperança. Porém, bem lá no fundo, descobriu bocadinhos de bolacha que exalavam um delicioso cheiro a chocolate com creme. Estava salva! Começou rapidamente a rasgar o plástico brilhante prateado da embalagem. Finalmente conseguiu e, encostando-se à parede, comeu aquilo que lhe pareceu o mais delicioso dos manjares.

Estava a comer o último pedacinho quando o barulho de uma porta a abrir a fez estremecer. Escondeu-se, assustada. Eram dois homens. Um deles era o tal que estava vestido de preto na peça e que caminhava com passos pesados e decididos para o local onde estava a tenaz. Fez uma cara de grande satisfação e deu uma volta pelos outros camarins, para ver se não havia mais nada esquecido. Voltando ao local inicial, soltou uma frase engraçada: “-Graças à minha tenacidade *…recuperei a tenaz!!!” Pegou nela com cuidado e, afastando-se a passos largos de onde a tinha encontrado, atravessou o palco e saiu da sala dirigindo-se ao carro, onde o aguardava uma senhora, pequena e simpática.

Espreitando por um buraco que conseguiu abrir, à pressa, no papel de que era feita a tenaz, enquanto o homem andava pelos outros camarins, Luna conseguiu ver que o carro conduzido pela simpática senhora se dirigia agora para longe da Rua da Paz, talvez para fora do perímetro usualmente frequentado pelos três ratinhos. O homem não escondia o seu contentamento por ter conseguido recuperar a tenaz “- Uma coisa que deu tanto trabalho a fazer!” “Assim, se voltar a ser precisa, já não há problema!” Luna conseguia ver a paisagem pela janela do carro mas aos solavancos. “Só espero que não me encontrem aqui! Senão, estou perdida! São capazes de me mandar desta para melhor! Ou antes, para pior!”

Luna estava muito longe de se encontrar com os seus irmãos mas, pelo menos, estava viva!”

À porta do campanário, Merlin, Bé e Tatá tinham conseguido roer o último pedacinho de madeira que os levaria à liberdade. Preparavam-se para passar pelo buraco, agora muito maior, quando sentiram passos pesados pararem junto à porta. Ouviram meter a chave e dar duas, três, quatro voltas. Era o sineiro que, finalmente, abria a pesada porta de madeira. “Afinal tanto trabalho para nada!” – disse a Bé. “ E eu que tive de roer esta madeira toda podre e mal cheirosa!” –rematou Merlin. “Calem-se e escondam-se!” –avisou a Tatá. “Não tarda nada, descobrem-nos e depois é que nunca mais nos safamos!” Os três ratinhos encolheram-se o mais que puderam atrás do primeiro degrau. O sineiro entrou, limpou os pés e fechou a porta com grande estrondo. Olhando para o fundo da porta, viu que agora entrava um feixe de luz. Fez uma careta e praguejou: “- Malditos ratos! Já não bastava o caruncho! Agora até eles roem a porta! Amanhã, já lhes trato da saúde! É só ir à drogaria a acabo-lhes com a raça!”.Os três ratinhos tremeram só de imaginar o destino que o sineiro lhes prometia. Os três engoliram em seco. Então o homem começou a subir os degraus lentamente e, a cada passo, ouvia-se ranger a madeira. Suspiraram de alívio quando sentiram que ele tinha chegado ao último degrau. Com muita cautela, começaram a sair pelo buraco na porta, um a um, em fila. Primeiro a Bé, depois a Tatá e a seguir o Merlin. Estavam finalmente na rua.

* (constância, perseverança, persistência)

sábado, 25 de julho de 2009

Às vezes as coisas não são aquilo que parecem!

Quando Luna atravessou o espelho, correndo atrás da menina quanto podia, sentiu de repente que o chão lhe fugia debaixo dos pés. Isto é, a lareira acabava abruptamente e Luna deu um valente trambolhão, caindo aos pés de um homem enorme, todo vestido de preto que, nervosamente, dava a mão à menina dizendo-lhe, para a sossegar, que estava tudo bem e que não tivesse medo. A menina deu um suspiro breve de alívio e, virando-se, preparava-se para voltar a atravessar o espelho mas em sentido contrário. Luna estava aturdida com tais manobras, ainda mais que a queda da lareira para o chão de madeira não tinha sido propriamente suave. Esfregava ela a coxa direita, quando o homem de preto lhe dá um grande pontapé atirando-a para as chamas cor de laranja que, afinal não passavam de uma magnífica imitação, com um efeito especial produzido por uma lâmpada normal de tungsténio embrulhada em papel celofane. Que grande confusão, pensava Luna enquanto se esquivava de uma menina a correr vestida Rainha Branca de peça de xadrez e duas senhoras que pareciam umas Torres. Enfim, estava numa casa muito estranha! Parecia um baile de máscaras mas, em vez de estarem divertidas, as pessoas pareciam nervosas. Ouvia sussurrar: “Calem-se! Vai abrir o pano!” Espreitando por entre as falsas chamas, Luna apercebia-se, agora, que estava perante uma audiência cheia de olhos cintilantes e ansiosos. Que tola -pensou. Saltara da janela do velho teatro, directamente para o palco onde se estava em plena representação de uma peça. E agora, como havia de sair dali? Se andasse para a frente, precipitava-se para o público que, certamente, sairia em pânico e aos gritos, atropelando-se uns aos outros. Se andasse para trás, arriscava-se a levar uma pisadela dos reis e rainhas, pretos e brancos. Ainda por cima, descobrira que havia lá duas gigantescas gatas, uma branca e outra preta. Ao pé delas o gato amarelo parecia um ratinho, ou seria uma ratazana!

Entretanto, no campanário da igreja, os três ratinhos davam voltas à cabeça, não querendo, sequer, pensar no pior. A Bé ainda conseguiu começar a falar sobre a possibilidade do gato amarelo ter conseguido apanhar a Luna depois do bombardeamento de pedras mas o Merlin e a Tatá nem a quiseram ouvir. Havia que agir, e depressa.

Desataram os dois a descer pela escadaria abaixo, logo seguidos da Bé que, aos gritos e ais, ia tropeçando, de vez em quando, nas caudas compridas e rosadas dos seus amigos que, por sua vez, também gritavam e praguejavam cada vez que a Bé os pisava. Foi uma descida interessante, em que uns gritavam porque ficavam com as caudas presas e outra gritava porque tropeçava nas ditas. Quando chegaram à base da torre da igreja verificaram que a porta estava fechada. E tão depressa não seria aberta, pois o sineiro tinha ido lanchar e ainda não eram horas de puxar a corda do sino outra vez. “Que horror!” - dizia a Bé. “Nunca vou esquecer …” Mas não a deixaram continuar. Merlin descobrira uma passagem por baixo da pesada porta de madeira e preparava-se para passar quando verificou que o buraco era demasiado pequeno. “Já sei! – disse a Tatá. “Vamos todos roer um bocadinho do buraco e assim já devemos conseguir passar!” E assim fizeram. Passaram uma boa meia hora a trincar madeira velha e podre e a cuspir para o lado. “Que sabor execrável!” – constatou Merlin. “Preferia comer alface!” – que não era, de todo, o seu prato favorito.

No teatro, as coisas não tinham melhorado. Luna acabava de ter uma ideia que poderia dar resultado. Á frente da lareira havia uma tenaz com um cavaleiro de cartão em posição de quem estava a escorregar. Lembrou-se, então, de se agarrar bem ao cavaleiro e esperar que o tirassem do lugar podendo, deste modo, esgueirar-se para fora de cena sem que ninguém pudesse dar conta dela. Se assim pensou, melhor o fez. Na cena seguinte, a lareira foi retirada para o lado esquerdo de quem olha para a frente do palco e a tenaz foi removida. Removida é uma força de expressão. A tenaz foi atirada para um canto, fazendo com que a nossa amiga, agarrada com quanta força tinha, tivesse sido projectada contra a parede interior de um dos camarins o que lhe provocou uma enorme dor de cabeça. Começou uma música engraçada e era tempo de se escapar dali para fora. O pior é que, após a pancada, Luna começou a sentir uma tontura, acabando por desmaiar, ficando ali, abandonada à sua pouca sorte, sem ajuda, completamente entregue a si mesma.

Com o final da peça, os actores começaram a sentir o alivio da responsabilidade que pesara sobre eles, enquanto iam despindo as roupas e as personagens, recebendo os parabéns de amigos e familiares por terem desempenhado tão bem os seus papéis. A sala foi ficando vazia. Os últimos a sair foram os técnicos de som e os responsáveis, vestidos de preto, bem como alguns actores mais velhos e respectivos familiares. Carregaram-se os adereços de palco, desmontaram-se os cenários, as últimas luzes apagaram-se e tudo o que tinha de ser levado dali foi carregado e transportado para outro lugar. Tudo, excepto a tenaz com o cavaleiro, ficando Luna desmaiada, atrás do adereço, caída no chão.

quinta-feira, 23 de julho de 2009

Onde estará Luna?

“Dizem que os campanários são lugares onde se pode marcar o tempo, através dos toques dos sinos! Regula-se assim a vida dos habitantes que vivem à sua volta!” – comenta a Bé. “Sim! - concorda a Tatá. “ Também emitem sons característicos que podem ter significados diferentes e muito importantes para quem os ouve!” – acrescenta. “Sinal de incêndio, de morte, de casamento e outros!” “ Pois, por isso é que sino vem da palavra latina signum que significa sinal!“ -completou a Bé. "Dizem que nas invasões francesas…” E durante algum tempo, as duas amigas continuaram a dissertar sobre as características e vantagens dos campanários, enquanto subiam a escadaria em caracol da torre da velha igreja, de tal maneira que nem se aperceberam da respiração ofegante de alguém que, com alguma dificuldade, subia ansiosamente os mesmos degraus de madeira, já meio comidos pelo caruncho, que o sineiro deixara apoderar-se discreta e perigosamente, em quase toda a sua altitude. Só o ranger de um degrau mais fragilizado fez com que as duas amigas olhassem para baixo, não sem um pequeno sobressalto, que rapidamente se transformou em alívio. Era Merlin quem subia afincadamente a escadaria, na ânsia de chegar ao mesmo tempo ao cimo da torre que há muito desejava conhecer. Abraçaram-se de contentamento, pois a última aventura ia resultando em tragédia e foi com enorme euforia que reviveram e recontaram os momentos mais críticos. Enquanto falavam os três ao mesmo tempo, o olhar de Merlin procurava qualquer coisa ou alguém que parecia faltar. Luna não se encontrava junto das outras ratinhas!...

Voltemos, então, um pouco atrás na história. Quando Luna se atirou do velho castanheiro, juntamente com Merlin, caiu em cima do gato amarelo e foi salva, tal como o amigo, pelas pedradas certeiras da Tatá e da Bé. Enquanto o gato desaparecia rapidamente, assustado e confuso, Merlin tombou para direita, enquanto que Luna tombou para a esquerda. Ora, o sítio onde Luna caiu era ligeiramente inclinado e escorregadio e esta foi rolando, rolando, até que parou, ou melhor, foi travada, por uma cameleira que, emergindo do solo, se elevava majestosamente, exibindo magníficas flores brancas que, com o embate, deixaram cair uma chuva de pétalas, ficando tudo coberto de uma camada tão fina e bela como a neve. Luna ficou atordoada e, olhando para cima para ver de onde caia tão grande quantidade de branco, avistou uma janela através da qual uma menina de cabelos encaracolados, presos por um laço azul, parecia discursar sobre qualquer coisa, enquanto olhava para baixo de quando em vez, para logo se afastar com gestos largos, como que iniciando um bailado. Luna esfregou os olhos e, tentando recompor-se da queda, conseguiu levantar-se e seguindo a menina com o olhar, subiu pela trepadeira que envolvia a curiosa janela da casa que se erguia à sua frente. Com algum esforço conseguiu subir até lá acima e, espreitando pela vidraça, inadvertida mas silenciosamente, empurrou-a vendo e ouvindo algo que fez com que duvidasse dos seus próprios olhos e ouvidos. A menina estava numa sala, grande e bem decorada, com móveis que pareciam pertencer a uma época passada e nada condizente com os dos pacatos e pobres habitantes da Rua da Paz. Falava com alguém, mas parecia não se encontrar mais ninguém naquela sala. Ao fundo, sobre uma lareira imponente, lindamente decorada e onde bailavam chamas alaranjadas, algo brilhava com intensidade, como um chamamento, uma atracção. Era o espelho mais belo que Luna alguma vez vira. Então, aconteceu uma coisa extraordinária: o espelho começou a diluir-se numa espécie de neblina e a menina, subindo por uma cadeira com alguma dificuldade mas decididamente, atravessou o espelho como se fosse a coisa mais natural do mundo. Durante alguns instantes Luna não quis acreditar no que os seus olhos viam mas, como era possuidora de uma grande curiosidade, rapidamente saltou da janela para o chão e correndo para cima da cadeira, galgou a lareira, conseguindo passar para o outro lado do espelho, antes que a neblina se transformasse novamente em vidro.

domingo, 19 de julho de 2009

Os Três Ratinhos

Merlin, Be e Luna eram três ratinhos irmãos que viviam no quintal da casa do sapateiro do Beco da Rua da Paz e andavam sempre juntos. Por vezes também se juntava a eles a Tatá que era amiga, de longa data, do Merlin. O que mais gostavam de fazer, era subir a lugares muito altos, para verem tudo o que a sua vista podia alcançar.

Passavam pelas mais extraordinárias aventuras. Certa vez, subindo a um carvalho enorme, ouviram um piar muito estranho de vozes que, em coro, pareciam desesperadas. Aproximaram-se um pouco, mas não viram nada nem ninguém. Passados, nem dois minutos, chegou um pequeno Picanço Barreteiro com qualquer coisa na boca, poisando num ramo ali próximo. Aventurando-se um pouco mais, chegaram-se à frente e acabaram por descobrir que estavam muito perto de um ninho com quatro pequenos Picanços em cujos bicos a mãe colocava um insecto que tinha ido buscar para lhes saciar a fome. O Picanço Barreteiro é uma ave migratória, que pode nidificar em várias árvores, entre elas os carvalhos e cuja característica mais marcante é a cor castanho-avermelhada na coroa e nuca, sendo mais arruivada nas fêmeas. Os ratinhos nunca tinham visto nada assim, não só porque as aves eram muito bonitas,mas também, porque lá em casa, embora já fossem todos crescidos, se recordavam bem que, quando nasceu a Dadá, não era deste modo que a mãe a alimentava.

Lá em baixo, o gato amarelo não cabia em si de contente ,por ter encontrado com tanta facilidade, tal quantidade e tão variados acepipes para o jantar.

Quando deram pela sua presença, já era tarde demais para descer. Estavam eles a pensar no que haviam de fazer à sua vida, quando a Bé teve a ideia de subirem para o ramo mais alto do velho castanheiro e, balouçando-se, tentarem cair no parapeito da janela do senhor Avelino, que ficava na casa mesmo ali ao lado. Assim fizeram. Primeiro saltou a Bé, que era a mais decidida, depois foi a Luna. O Merlim, que em tudo era um perfeccionista, queria fazer um salto muito elaborado e isso envolvia muitos preparativos. Finalmente o Merlin anunciava, em voz alta: “-Aqui vou eu!” É preciso dizer que Merlin era um ratinho muito brioso. Quando metia na cabeça que havia de fazer uma coisa, fazia-a bem feita e não havia quem lha tirasse da ideia. Por isso não era de estranhar que, sendo o último, precisasse de se chegar atrás para ganhar balanço, de forma a que o salto saísse na perfeição. Só que, durante este recuo, escorregou numa folha solta e ficou pendurado no ramo da árvore, sem que ninguém lhe pudesse valer. A Bé e a Luna entraram em pânico!...Ora, neste momento, ia a passar, mesmo perto do gato amarelo, a Tatá que, apercebendo-se do perigo que o amigo corria, imediatamente pôs em pratica uma estratégia para o salvar. Ela tinha, realmente, uma grande presença de espírito. Pegando numa espiga de milho que, juntamente com outras, estava amontoada no pátio da casa, vai de se agarrar a ela com tanta força que, empurrando os pés com destreza, conseguiu fazer soltar uma rajada de grãos de milho mesmo na direcção do focinho do gato amarelo, fazendo-o ficar furioso e correr logo de seguida atrás dela e que ,por pouco, não foi apanhada.

Merlim estava mais apavorado com a possibilidade do gato amarelo apanhar a Tatá do que de cair em cima do focinho dele. A Bé e a Luna sustiveram a respiração por segundos, que foi o tempo que a Tatá demorou a enfiar-se num buraco da velha árvore. Enquanto se baloiçava na árvore, Merlim só pensava em como se tinha metido naquele sarilho e como já não havia nada a fazer senão sofrer as consequências, fossem elas quais fossem. Numa inspiração momentânea, Luna teve uma ideia que talvez pudesse resultar para salvar o amigo Merlin de se estatelar: Puxando uma folha do ramo de onde tinha saltado, conseguiu içar-se e foi pôr-se ao lado de Merlin, dizendo muito baixinho: “-Amigo, agarra-te à minha cauda com a patinha esquerda enquanto eu penso numa maneira de nos tirar daqui! Vês lá em baixo um monte de feno? Se fizermos pontaria juntos, podemos balançar-nos e cair em cima dele, em vez de partirmos o pescoço!” Merlin não queria. Achava que o mais seguro era continuar balançando no troco da árvore à espera de uma corrente de ar que o levasse para um sítio seguro e, de preferência, quentinho. Luna insistia, a Bé gritava, a Tatá chorava e Merlin estava a entrar em depressão.

No meio desta confusão, a mãe Picanço começava a ficar furiosa com tamanha barulheira e desatou a dar bicadas nas patitas do Merlin, que gritava desalmadamente. Não aguentando mais, agarrou-se com toda a força à cauda da Luna e largou o ramo. A Luna nunca pensou que o Merlin pesasse tanto. Ia ficando sem cauda. Então, gritando de dor e de desespero, Luna largou também o ramo, indo cair os dois ao mesmo tempo, não no monte de feno, mas no monte de pelo amarelo do gato que estava a olhar para cima, a abanar a cauda, excitado, sorrindo e lambendo os beiços, com a perspectiva de apanhar os dois de uma assentada. Assim que os ratitos caíram, o gato deitou-lhes as unhas e começou a atirá-los ao ar. Luna e Merlin gritavam aterrorizados. Eram atirados ao ar e deixados cair sem dó nem piedade pelo cruel gato amarelo, que via nesta brincadeira mais uma maneira de passar o tempo do que propriamente de se alimentar, pois tinha acabado de lanchar uma rodela de chouriço que o sapateiro lhe tinha trazido de casa.

Estava ele nesta brincadeira, quando desaba uma tempestade de pedras, não se sabe de onde, deixando o gato desorientado. Nem tempo teve de ver de onde elas vinham e começou a correr em direcção à loja do sapateiro refugiando-se atrás de um monte de botas e sapatos ,que esperavam pela sua vez de serem consertados.

“Foi por um triz!” - Disseram em uníssono a Bé e a Tatá. “Se não tivéssemos encontrado este monte de areia, de onde começámos a atirar grãos em direcção ao gato amarelo, com as nossas patinhas traseiras, ainda hoje o gato ia papar uma jantarada daquelas!”

Dito isto, fugiram dali para fora e dirigiram-se ao campanário da Torre da Igreja, que há muito lhes tinha despertado a atenção.

Para saberes mais sobre o Picanço Barreteiro, Ave do Ano 2009

http://www.spea.pt/index.php?op=avedoano2009